segunda-feira, 31 de março de 2014

Cora Coralina



Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, mais conhecida como Cora Coralina, é considerada uma das maiores escritoras brasileiras. Nascida em 1889, na cidade de Goiás, teve seu primeiro livro (Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais) publicado em 1965, quando já tinha 75 anos.
Doceira, amante da simplicidade, viveu longe de modismos literários, e assim produziu uma obra que prioriza a mensagem acima da linguagem. Apaixonada por sua terra, escreveu verdadeiras odes. Cantou os becos, as lendas, a língua, o milho; cantou cada centímetro de Goiás e de seu próprio passado (dois temas que são um só, afinal).
Voz mágica. Seu livro chegou às mãos do poeta Carlos Drummond de Andrade e teve o poder de inspirá-lo a escrever uma carta:

"Cora Coralina

Não tendo o seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de que ele as deposite em suas mãos. Admiro e amo você como a alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. Ah, você me dá saudades de Minas, tão irmã do teu Goiás! Dá alegria na gente saber que existe bem no coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina

                  Todo o carinho, toda admiração do seu

                                      
                                           Carlos Drummond de Andrade"


Um dos poemas mais brilhantes de Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais é o Poema do Milho. Exemplar perfeito de sua obra que transcende as "desimportâncias" do cotidiano.
Escreve a autora em Ressalva: "Este livro: / Versos . . . Não / Poesia . . . Não./ um modo diferente de contar velhas estórias". Mas quando se lê um só verso, é a mais funda e natural poesia que fala.

Então transcrevo o Poema do Milho (que é longo, mas poderia ser bem mais, pro nosso prazer):

"Poema do Milho

Milho...
Punhado plantado nos quintais.
Talhões fechados pelas roças.
Entremeado nas lavouras.
Baliza marcante nas divisas.
Milho verde. Milho seco.
Bem granado, cor de ouro.
Alvo. Às vezes vareia,
- espiga roxa, vermelha, salpintada.

Milho virado, maduro, onde o feijão enrama.
Milho quebrado, debulhado
na festa das colheitas anuais.
Bandeira de milho levada para os montes,
largada pelas roças.
Bandeiras esquecidas na fartura.
Respiga descuidada
dos pássaros e dos bichos.

Milho empaiolado...
abastança tranquila
do rato,
do caruncho,
do cupim.
Palha de milho para o colchão.
Jogada pelos pastos.
Mascada pelo gado.
Trançada em fundos de cadeiras.

Queimada nas coivaras.
Leve mortalha de cigarros.
Balaio de milho trocado com o vizinho
no tempo da planta.
“- Não se planta, nos sítios, semente da mesma terra”.

Ventos rondando, redemoinhando.
Ventos de outubro.

Tempo mudado. Revoo de saúva.
Trovão surdo, tropeiro.
Na vazante do brejo, no lameiro,
o sapo-fole, o sapo-ferreiro, o sapo-cachorro.
Acauã de madrugada
marcando o tempo, chamando chuva.
Roça nova encoivarada,
começo de brotação.
Roça velha destocada.
Palhada batida, riscada de arado.
Barrufo de chuva.
Cheiro de terra, cheiro de mato.
Terra molhada. Terra saroia.
Noite chuvada, relampeada.
Dia sombrio. Tempo mudado, dando sinais.
Observatório: lua virada. Lua pendida...
Circo amarelo, distanciado,
marcando chuva.
Calendário, Astronomia do lavrador.

Planta de milho na lua-nova.
Sistema velho colonial.
Planta de enxada.
- Seis grãos na cova,
quatro na regra, dois de quebra.
Terra arrastada com o pé,
pisada, incalcada, mode os bichos.

Lanceado certo-cabo-da-enxada.
Vai, vem... sobe, desce...
terra molhada, terra saroia...
- Seis grãos na cova; quatro na regra, dois de quebra.
Sobe. Desce...
Camisa de riscado, calça de mescla.
Vai, vem...
golpeando a terra, o plantador.

Na sombra da moita,
na volta do toco - o ancorote d’água:

Cavador de milho, que está fazendo?
Há que milênios vem você plantando.
Capanga de grãos dourados a tiracolo.
Crente da Terra. Sacerdote da terra.
Pai da terra.
Filho da terra.
Ascendente da terra.
Descendente da terra.
Ele, mesmo, terra.

Planta com fé religiosa.
Planta sozinho, silencioso.
Cava e planta.
Gestos pretéritos, imemoriais.
Oferta remota, patriarcal.
Liturgia milenária.
Ritual de paz.

Em qualquer parte da Terra
um homem estará sempre plantando,
recriando a Vida.
Recomeçando o Mundo.

Milho plantado; dormindo no chão, aconchegados
seis grãos na cova.
Quatro na regra, dois de quebra.
Vida inerte que a terra vai multiplicar

Evém a perseguìção:
o bichinho anônimo que espia, pressente.
A formiga-cortadeira - quenquém.
A ratinha do chão, exploradeira.
A rosca vigilante na rodilha,
O passo-preto vagabundo, galhofeiro,
vaiando, sorrindo...
aos gritos arrancando, mal aponta.
O cupim clandestino
roendo, minando,
só de ruindade.

E o milho realiza o milagre genético de nascer.
Germina. Vence os inimigos,
Aponta aos milhares.
- Seis grãos na cova.
- Quatro na regra, dois de quebra,
Um canudinho enrolado.
Amarelo-pálido,
frágil, dourado, se levanta.
Cria sustância.
Passa a verde.
Liberta-se. Enraíza.
Abre folhas espaldeiradas.
Encorpa. Encana. Disciplina,
com os poderes de Deus.

Jesus e São João
desceram de noite na roça,
botaram a bênção no milho.
E veio com eles
uma chuva maneira, criadeira, fininha,
uma chuva velhinha,
de cabelos brancos,
abençoando
a infância do milho.

O mato vem vindo junto.
Sementeira.

As pragas todas, conluiadas.
Carrapicho. Amargoso. Picão.
Marianinha. Caruru-de-espinho.
Pé-de-galinha. Colchão.
Alcança, não alcança.
Competição.
Pac... Pac... Pac...
a enxada canta.
Bota o mato abaixo.
Arrasta uma terrinha para o pé da planta.
“- Carpa bem feita vale por duas...”
quando pode. Quando não... sarobeia.
Chega terra. O milho avoa.

Cresce na vista dos olhos.
Aumenta de dia. Pula de noite.
Verde. Entonado, disciplinado, sadio.

Agora...
A lagarta da folha,
lagarta rendeira...
Quem é que vê?
Faz a renda da folha no quieto da noite.
Dorme de dia no olho da planta,
Gorda. Barriguda. Cheia.
Expurgo... Nada... força da lua...
Chovendo acaba - a Deus querê.

“- O mio tá bonito...”
“- Vai sê bão o tempo pras lavoras todas...”
“- O mio tá marcando...”
Condicionando o futuro:
“- O roçado de seu Féli tá qui fais gosto...
Um refrigério”
“- O mio lá tá verde qui chega a s’tar azur...”
- Conversam vizinhos e compadres.

Milho crescendo, garfando,
esporando nas defesas.
Milho embandeirado.
Embalado pelo vento.

“Do chão ao pendão, 60 dias vão”.

Passou aguaceiro, pé-de-vento.
“- O milho acamou...” “- Perdido?”... “- Nada...
Ele arriba com os poderes de Deus...”
E arribou mesmo, garboso, empertigado, vertical.

No cenário vegetal
um engraçado boneco de frangalhos
sobreleva, vigilante.
Alegria verde dos periquitos gritadores...
Bandos em sequência... Evolução...
Pouso... retrocesso.

Manobras em conjunto.
Desfeita formação.
Roedores grazinando, se fartando,
foliando, vaiando
os ingênuos espantalhos.

“Jesus e São João
andaram de noite passeando na lavoura
e botaram a bênção no milho”.
Fala assim gente de roça e fala certo.
Pois não está lá na taipa do rancho
o quadro deles, passeando dentro dos trigais?
Analogias... Coerências.

Milho embandeirado
bonecando em gestação.
- Senhor!... Como a roça cheira bem!
Flor de milho, travessa e festiva.
Flor feminina, esvoaçante, faceira.
Flor masculina - lúbrica, desgraciosa.

Bonecas de milho túrgidas,
negaceando, se mostrando vaidosas.
Túnicas, sobretúnicas...
saias, sobressaias...
Anáguas... camisas verdes.
Cabelos verdes...
Cabeleiras soltas, lavadas, despenteadas...
- O milharal é desfile de beleza vegetal.

Cabeleiras vermelhas, bastas, onduladas.
Cabelos prateados, verde-gaio.
Cabelos roxos, lisos, encrespados.
Destrançados.
Cabelos compridos, curtos,
queimados, despenteados...
Xampu de chuvas...
Flagrâncias novas no milharal.
- Senhor, como a roça cheira bem!...

As bandeiras altaneiras
vão-se abrindo em formação.
Pendões ao vento.
Extravasão da libido vegetal.
Procissão fálica, pagã.
Um sentido genésico domina o milharal.
Flor masculina erótica, libidinosa,
polinizando, fecundando
a florada adolescente das bonecas.

Boneca de milho, vestida de palha...
Sete cenários defendem o grão.
Gordas, esguias, delgadas, alongadas.
Cheias, fecundadas.
Cabelos soltos excitantes.
Vestidas de palha.
Sete cenários defendem o grão.
Bonecas verdes, vestidas de noiva.
Afrodisíacas, nupciais...

De permeio algumas virgens loucas...
Descuidadas. Desprovidas.
Espigas falhadas. Fanadas. Macheadas.

Cabelos verdes. Cabelos brancos.
Vermelho-amarelo-roxo, requeimado...
E o pólen dos pendões fertilizando...
Uma fragrância quente, sexual
invade num espasmo o milharal.

A boneca fecundada vira espiga.
Amortece a grande exaltação.
Já não importam as verdes cabeleiras rebeladas.
A espiga cheia salta da haste.
O pendão fálico vira ressecado, esmorecido,
no sagrado rito da fecundação.

Tons maduros de amarelo.
Tudo se volta para a terra-mãe.
O tronco seco é um suporte, agora,
onde o feijão verde trança, enrama, enflora.

Montes de milho novo, esquecidos,
marcando claros no verde que domina a roça.
Bandeiras perdidas na fartura das colheitas.
Bandeiras largadas, restolhadas.
E os bandos de passo-pretos galhofeiros
gritam e cantam na respiga das palhadas.

“Não andeis a respigar” - diz o preceito bíblico.
O grão que cai é o direito da terra.
A espiga perdida - pertence às aves
que têm seus ninhos e filhotes a cuidar.
Basta para ti, lavrador,
o monte alto e a tulha cheia.
Deixa a respiga para os que não plantam nem colhem.
- O pobrezinho que passa.
- Os bichos da terra e os pássaros do céu."





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sábado, 29 de março de 2014

Para os fãs de Totoro

Para os fãs de Totoro (do filme Meu vizinho Totoro), assim como eu, trago imagens feitas por fãs e também retiradas do filme! Divirtam-se com essa pequena seleção! :)

















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sexta-feira, 28 de março de 2014

A quilha do navio celeste - Constelação de Carina

Nebulosa Eta Carinae
Carina ou Carena do Navio ou Quilha é uma constelação do hemisfério celestial sul. Suas constelações vizinhas são: Centaurus, Vela, Puppis, Pictor, Volans, Chamaeleon e Musca. Sua estrela mais brilhante é Canopus (segunda estrela mais brilhante do céu, perdendo apenas para Sirius).
Carina é na verdade uma das três partes, junto com a Vela e a Popa, da antiga constelação de Navio, que foi dividida em 1754 por Lacaille.
Segundo a mitologia grego Argos Navis (Navio), representava o navio que Jasão e os Argonautas usaram na sua busca pelo velocino de ouro. Do navio é apenas visível a metade posterior. Dizem que o resto da embarcação não é visível por estar envolta em nevoeiro, ou porque se refere ao momento em que o Argo se lançara na travessia dos Rochedos Azuis que estariam, por isso, a ocultar a proa.


Antigamente, para alguém que vivia no hemisfério norte, a estrela Canopus (a estrela mais brilhante dessa constelação) servia para indicar a posição do Pólo Sul. O nome da estrela tem conexão com outro episódio da mitologia grega, vindo da lenda da Guerra de Troia. Como a constelação de Carina fazia parte da gigantesca constelação de Argo Navis, à estrela mais brilhante foi dado o nome do piloto do navio, Canopus (piloto de Menelau em sua expedição para reaver Helena de Troia).


Outra explicação para o nome dessa estrela é oriunda do Copta egípcio, Kahi Nub ("Terra dourada"), fazendo menção a cor avermelhada como essa estrela aparecia no horizonte do Egito. Há também um antigo porto egípcio em ruínas, Canopus, que aparentemente recebeu o nome da estrela, localizado na foz do Nilo.
Na bandeira brasileira Canopus, representa o estado de Goiás, fazendo uma alusão a nau Argo e em memória da navegação.



Fontes:
https://www.eso.org/public/brazil/images/eso1031c/
http://www.siteastronomia.com/estrela-canopus-constelacao-de-carina
http://astronomia-para-amadores.blogspot.com.br/2012/03/quilha-carina.html


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quinta-feira, 27 de março de 2014

RITUAL

Ah! Chacais e serpentes do deserto. Que envenenam minha carne com seus dentes enquanto rasgam minha pele. Fome ferina, cheia de mácula e desejo por sangue. Essa noite, sou seu melhor banquete.
Seres noturnos, criaturas da escuridão. No dourado brilho de vossas íris esconde-se a ânsia de sugar cada fragmento que personifica esse meu débil ser.
Aqui estou para vós. Livre de qualquer amarra, vazio de qualquer sentimento, seco de qualquer sentido. Apenas tenho um cigarro na mão... Nem minha alma trouxe comigo... Abandonei-a há muitas léguas daqui, longe o suficiente para não assistir o ardil dessa cena, longe o suficiente para não derramar lágrimas de compaixão. Compaixão que outrora pude até sentir por mim. Mas não hoje!... Hoje, nessa noite onde impera o luar argento eu sou apenas esse traste. Apenas esse corpo impotente, esse ser pecador.
Espectros do breu! Já posso sentir as vossas respirações cada vez mais perto de mim... muito mais perto.
Posto-me nessa pedra com o olhar perdido aos ventos que cospem areia e farfalham folhas enquanto trago meu cigarro. Vós me perguntais a razão de minha tranqüilidade frente a essa cena trágica? Repondo com uma indagação: existe escolha?!
Depois de tantos dedos que me foram apontados, depois de tantas palavras que foram jogadas, depois de tantas e tantas vezes que minhas asas falharam frente a imensidão dos céus. Depois de tanto usar máscaras e vestir personagens para agradar outrem, depois de dançar o compasso das canções sórdidas de homens mesquinhos e mulheres infames. Depois apenas sobreviver nessa selva infecta chamada sociedade. Depois de não haver mais mentiras para contar a mim mesmo e arfar os lábios em tentativas inúteis de sorrir. Depois de quase não mais conseguir conter a pressão dos fluídos amorfos de sentimentos negativos. Depois de me ver completamente só em meio a uma legião de homens e cansar de engolir poeira, de esmigalhar sonhos e alimentar esperanças cínicas.
Eu aqui abandono tudo que já fui.
Abandono a mim mesmo nesse deserto do sem fim... nessa dimensão paralela criada pelo meu inconsciente. Abandono-me aqui e abro as represas de mágoa e de revoltas. E pela primeira vez eu as deixo correr soltas...
Mas não apenas isso! Entrego a vós criaturas da noite esse meu corpo, essa minha personificação do traste em que me tornei... Dilacerem-no, peço-vos, de tal forma que eu jamais o torne a ver. Permitam apenas que a única parte sã que de mim sobrou, minha alma, ainda sobreviva além daqui. Permita que um dia, após todos esses tormentos passados, minha pobre alma reencontre um novo eu. Um eu mais luminoso, mais verdadeiro...
Não, não gargalhem da minha desgraça almas noturnas! Bem sei que muito fui avisado... Quantos alertas foram-me dado? Infindos... mas isso não bastou. Não bastou. Foi preciso ainda mais um pouco de arrogância, mais um pouco de ganância. Foi preciso alimentar mais desgraças... todas as já vividas, ainda não haviam preenchido meu ser. Foi preciso que a única pessoa que realmente me amou me virasse a cara, não mais me reconhecesse... Foi preciso ver de seus olhos verterem água. Foi preciso sofrer esse abandono. Não beber mais de sua luz. Foi preciso compreender que as mentiras que eu contava só maltratavam mais ainda a única pessoa que contemplou minha verdadeira essência. Foi preciso ver que a frustração corroendo os nervos daquele ser gentil. Foi preciso ver, devido a meu egoísmo e descuido, seus rubros lábios, pouco a pouco definharem e tornarem-se qual marfim. Foi preciso ver aquele peito sem mais respirar e não mais ouvir o som de seu sorriso.
Sim! Não foi preciso transformar-me apenas nesse verme, o crucial foi acolher a perda do que me era mais valioso... Outrora ouvi dizer que a perda carrega o poder de arquitetar grandes mudanças, de modificar destinos. Aqui estou eu, vivendo esse fato, esse fado.
Por isso, pela memória do último sorriso daqueles rubros lábios que decoravam os meus dias, eu me abandono nesse deserto para vós seres ferinos. Para vós que sois muito mais sensatos, muito mais íntegros do que qualquer homem que já cruzou meu destino, do que qualquer homem que já fui!
Senhores da escuridão... aqui estou para ser devorado, para ser destituído de tudo que já fui... aqui estou a espera de vossos dentes, de vossas unhas. Estou a espera da ferida do castigo, a espera do sangue escorrendo pela boca, do rasgar da carne. Aqui estou senhores...
Entregue a vós na esperança de que depois que esse meu eu sujo não mais restar e toda dor, ânsias e escuridão extravasarem ao além. Finalmente possa surgir um novo eu. Um eu que tirará do veneno da perda seu mais potente elixir.  Que transcenderá as portas desse umbral como um ser mais íntegro, um ser mais puro e livre de qualquer dor.
Mas enquanto isso não sucede... vinde a mim seres da noite do deserto! Que nesse colapso insano a perda venha se tornar minha dor menor...

 (Michelle C. Buss)

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