Ondula, savana branca, de Ruy Duarte de Carvalho, é uma coletânea de textos, publicada em 1989, das mais diversas tradições orais africanas. A obra está dividida em "Versões", "Derivações" e "Reconversões", configurando as várias operações que Duarte realiza a partir do material da oralidade de vários povos africanos (Fulani, Yorubá, Pigmeu, Ngoni, Didinga, Akan, Dinkas, Xhosa, Thonga, Somali, Barg-dâmaras, Mensa, Zulu, Nyaneka, Kwanyama). Com sua sensibilidade poética e transitando pelos domínios da etnografia, Ruy Duarte de Carvalho produz um livro instigante e de uma riqueza cultural e literária enorme.
Uma das partes de Ondula, savana branca, a "Bambara"(etnia Bambara [Bamaba, na sua própria língua, ou algumas vezes, Banmana] é um povo que vive no oeste da África, principalmente no Mali, próximo ao rio Níger), é regida pelo "Ensinamento oral do Koré". As estrofes são organizadas com informações a respeito do processo de iniciação ao conhecimento de preceitos do Koré, aprendido pelos membros do povo Bambara, desde a mais tenra idade, como uma forma da preparação da espiritualização e divinização do homem.
Abaixo, segue o poema, considerado para mim como um dos mais belos que já li:
Ensinamento oral do Koré
A voz dos Karaw
*
PRIMEIRA TIRADA
Savana verde bem fresca
savana verde verdadeiramente aberta
à fome dos rebanhos
exposta aos rebanhos famintos
savana verde
não se apossou a terra ainda
do meu corpo
e eu posso abrir os prados
da palavra.
Deslumbramento, surpresa!
Já existia o que se aprende agora
e o que acontece acontecia já.
Mas como havia de sabê-lo então
quando a torrente me arrastava ainda
e eu via a minha face a renovar-se?
O princípio do princípio da palavra
foi quando o pássaro disse para si mesmo:
eu falo, sua a beleza, o som e o movimento
e a consciência exacta destes dons.
E se eu me engano
que o castigo seja cego para o meu erro
e o esquecimento ressalve o esquecimento
porque eu não passo de um punhal
embainhado
porque eu não sou abóbada celeste
nem sou o filho da abóbada celeste
e nem sequer o espaço do encontro
a que se entregam as asas do crepúsculo.
Eu sou aquele, apenas
que está rendido ao canto que anuncia
o fim da noite
e o despontar da aurora.
Uma atenção sem fé engendra o esquecimento
e o esquecimento é que apadrinha o erro.
Da casa do saber
um pátio apenas sou e no entanto um pátio
pertence já também à construção.
Cada conquista
provém de outra conquista
e a posse da ciência é discernir
como se entrança nelas o saber.
É casa já também
o pátio que precede a construção.
Transformação
transformação.
Fornalha
fornalha do homem.
Dos homens pacientes
eu digo que a paciência
é uma paciência clara.
Eus o espaço do encontro:
toda paciência é uma paciência clara.
Transformação!
SEGUNDA TIRADA
Ondula, ondula
savana branca
até que tudo se confunda em ti.
Oh fragmentadores da noite crepuscular
por detrás dos animais só há obscuridade
e obscuridade só
pela sua frente.
O poderoso hipopótamo
está perdido num bosque sem saída.
Já quando quis entrar
recorreu a uma pequena criatura
cega como ele e como ele perdida.
Como fará o cego para que possa ver?
Será capaz de assegurar ao passo
a graça da cadência original?
A fornalha poupou-nos
preparou-nos
para atravessar as portas do mistério.
Verga-te, oh céu
e entrega-te tu, oh terra
para que eu veja essa clareira branca
o mato abandonado
a mata abandonada
e nada se oculte
tudo esteja lá.
A fornalha poupou-nos e é tempo de dizer
velhos e vãos fragmentadores do céu
que o corpo não findou
e está ressuscitado.
Submetei-vos
asas brancas do crepúsculo
ao lugar do encontro dos espaços
à primeira das palavras
a que remonta à parição do homem
e viajou por todas as clareiras
até desembocar na casa do saber.
Eis a Palavra, é esta
a que não dorme
a que não cessa de aguardar
no coração dos homens.
Conhece-a apenas o urso formigueiro
visionário que escava no mais fundo
e o porco-espinho
que é o mestre protector do conhecimento herdado
e o falcão branco
que é rápido e ladino
e se apercebe de tudo ao mesmo tempo.
Mas foge ao falcão cinzento
que não se fixa e voa distraído.
Aquilo que eu sei
alguém mo legou.
Pai Palavra
Mãe Palavra
Palavra anterior
vem e transforma já o meu futuro.
Repartamos a carga pelas nossas cabeças
oh filhos dos fragmentadores do céu
unamos a perseverança do aprendiz
à perseverança do mestre.
Transformação!
Acalmai-vos
fragmentadores alados do crepúsculo
eu sou a Palavra
a abóbada celeste
o encontro dos espaços.
A noite é escura
vazia não é.
TERCEIRA TIRADA
Como o punho da lança
como a abóbada celeste
como o filho único da altura
acalmai-vos, eis-me aqui
oh sopradores do crepúsculo
Abóbada celeste
filho único da altura
ave surda-muda
labareda acesa que não atinge o osso.
Obscura é a palavra
embainhada até para os velhos mestres
e mesmo o fundador
foi procurar sabê-la mais além.
Há coisas úteis na casa do amigo
e há coisas úteis na do inimigo:
não será pois de recorrer às duas?
Pela paz se alcança a paz
e o que há para além da paz.
Labor imenso!
Transformação!
O que se ensina agora existe desde sempre.
E é a casa já também
o pátio que precede a construção.
QUARTA TIRADA
Savana verde bem fresca
savana verde verdadeiramente aberta
à fome dos rebanhos
exposta aos rebanhos famintos
savana verde:
não se apossou a terra ainda
do meu corpo
e eu posso abrir as portas da palavra.
Ave surda-muda
palavra obscura
o que há no alto
oh sopradores da noite?
Se interrogardes a velha experimentada
saberá elucidar-vos que se trata
da fornalha
do calor
dificuldade extrema.
Mas as verdes raparigas sabem bem
que o fogo não é forte:
resiste mas convida
e se abandona enfim
a quem persiste.
O que se ensina agora
existe desde sempre
e há coisas úteis na casa do amigo
e coisas úteis na do inimigo.
Obscura é a palavra
embainhada até para os velhos mestres
e mesmo o fundador
foi procurar sabê-la além de si.
O que seria enfim da reflexão
se a não iluminasse a luz do espírito?
O que sabeis das tranças do saber
velhos e vãos fragmentadores da noite?
O que sabeis da luz da reflexão?
— QUE HABITA NA PENUMBRA DO MISTÉRIO!
Bibliografia consultada:
CARVALHO, Ruy Duarte de. Ondula, savana branca. Luanda: UEA, 1989.
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Percursos da memória em textos das literaturas africanas de língua portuguesa. Niterói: Gragoatá, n.19. p. 45-63, 2. sem. 2005.
Texto de Michelle C. Buss
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Evoé
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