sexta-feira, 9 de março de 2018

GENESIS ou RITUAIS DE NASCIMENTO



1. com trinta e sete semanas a caminho do hospital

antes mesmo do primeiro choro
do parto

ainda no ultrassom do quarto
mês
o resultado disse:
       será Mulher

mal eu sabia o que era
Mulher
a que condição eu seria imposta
mal eu sabia a que contrato invisível eu assinava
quando o exame disse que eu era Mulher.

no ninho de músculos do útero
de minha mãe
como eu poderia imaginar
toda violência trançada a sangue
na palavra Mulher?

Mulher
e eu carregaria todas as correntes de medos e gemidos
de minha mãe, minha avó, de todas a Mulheres que me fizeram
e da primeira Mulher, a primordial, de minha ancestralidade

2. hiperventilação

estava tatuado em meu gênero,
na genética do meu segundo cromossomo x
                   violência doméstica
                   violência no trabalho
                   violência no trânsito
                   violência na gravidez
                   violência na história da humanidade
                   violência na amamentação
                   violência na tpm
                   violência na menstruação
                   violência na rua
                   violência na terceira idade

3. “pra fazer não dói, agora para sair vai doer”

Mulher
e a sombra da palavra crescia
         violada
         o corpo violado
         os desejos violados
         a maternidade violada
         o útero violado
         o coração violado
    violência física
    violência emocional
                   violência mental
                   violência espiritual

“não importa o quanto você seja boa...”
“você é só uma mulher...”
“que frescura, bem coisa de mulherzinha...”
“tinha que ser mulher!”
“para de fazer drama, deixa de ser mulher!”

4. as contrações dilatam a madrugada

antes que eu nascesse
a sociedade já tirava
meu sentir
tirava meu direito às cólicas
à sensibilidade lunar

a sociedade me impunha
mulher = artigo de objetificação masculina.
             peitos, bundas.
  de preferência, mansa.
não tão inteligente.
também não tão burra.
se estragar pode dar
uma dose de rivotril.
se não funcionar
o indicado é jogar fora
e comprar outra.
pagamento em qualquer
palavra de afeto e sem juros.

5. “respira, para de gritar, respira”

dizem que as fúrias não existem
mais
mas só mudaram o aspecto e o
nome
fúrias em chamas

ai de mim, que vivo uma antiga tragédia grega
em pleno século XXI.

nasci Mulher
e com isso veio o medo
de sair na rua
os bons costumes femininos de muitas avós:
a passividade e o conformismo
a cantada nojenta dos pedreiros
dos motoristas do cara que grudou o olho
na minha bunda quando passei por ele

nasci Mulher
e era um contrato
         boa esposa
         boa mãe
         boa de cama
         boa em não reclamar
         boa em ficar calada
         boa em se apagar
         boa em não chorar
         boa em só sorrir

uma máquina perfeita para servir

nasci Mulher
inconsciente de minha
existência

trabalhando mais ou melhor
e ganhando menos por não
não ter um pênis, mas uma vagina

6. “se ficar gritando, vai fazer mal para seu neném”

nasci Mulher
e me ensinaram
a competir com outras Mulheres
minhas irmãs

a mais bonita
a mais inteligente
não seja superficial
combina direitinho essas cores?
deixa crescer esse cabelo
que vestido horrível
isso é roupa que uma Mulher use?
fale algo que preste
você ainda não tem namorado?
ele te traiu porque você merecia
cuidado que exigente assim vai
acabar ficando pra titia
tá muito velha pra escolher
como você tá gorda
tá magra demais
ser melhor que fulana
falar mal da ciclana
mas a ciclana até que está bonita
por que não gosto dela?
me disseram
que Mulher é tudo falsa mesmo
que Mulher não se arruma
pra os homens, se arruma pra outras Mulheres

quem disse isso?

7. “cadê o pai? não veio acompanhar?”

nasci Mulher
e o calendário mensal
me fez odiar essa palavra

não me ensinaram me amar mulher

e toda vez eu chorava
sangue era motivo de
rejeição
humilhação
incompreensão
do meu pai, do meu irmão,
do marido, do gerente

toma pílula para parar de
sangrar
eu sangro choro por dentro
é bom tomar mesmo, viu
assim não inventa de engravidar

se engravida sozinha?
uma Mulher engravidar é crime?

meu deus
porque tenho que pedir
ajuda pra um deus que
justamente é homem?
por que não minha deusa?
onde foi parar a parte
feminina de deus?

ai, minha deusa...

freud diz que explica...
me faz sentir culpada
revolta:
quem disse que meu
problema é não ter um pau
quando eu tenho algo muito melhor?

pandora do desejo

8. a força. o grito. um corpo saindo de outro

objeto não sente
objeto não quer
objeto é apenas para uso

por que isso, mundo?

até a língua é machista
numa sala de meninas
e só um menino
todas elas viram “todos”
por que o menino não aceita ser “todas”?
por que todas as meninas aceitam ser “todos”?

jung disse que todo homem
tem uma Mulher
interior
e toda Mulher tem um
homem si

mas pelo jeito que nos tratam
essa Mulher deve ser
a maior prisioneira da história da humanidade

e reclamam que eu luto
mas homem nenhum é capaz
de compreender o peso
da condição que me fizeram carregar

já tive raiva
já tive ódio por ser Mulher
(próxima encarnação, tomara que eu nasça homem)

9. um choro de bebê: “é uma menina”

pouco parei para pensar
observar
o micro-macro-micro e outra vez
macro-cosmo que existe em
mim
Mulher universo em constante
expansão
princípio das noites que gesta o dia
lei das renovações

não me ensinaram a
gostar de ser Mulher

acordem Mulheres
despertem todas

sintam como é bom ser
o que somos
retomem a sabedoria do sentir
consagrem a si o seu poder

mergulhemos no mar dos despertos

acolhimento consigo
acolhimento com a ignorância do outro
aceitar nunca
fazer diferente
ser diferente
livre para ser
           
renascer diferente
         livre
         livre
         nascer
         Mulher


(Michelle C. Buss)


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Evoé
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