Chico
Buarque de Holanda é um dos maiores nomes da canção popular brasileira. Cancionista
reconhecido nacional e internacionalmente por sua excelência, ele alcançou esse
patamar graças à sua formação intelectual e histórica. Filho do jornalista,
historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, cujas obras se tornaram peças-chave
para a interpretação do Brasil, Chico teve acesso não só a livros de história,
mas também a obras literárias e poéticas que influenciariam diretamente sua
dicção sofisticada e formalidade poética, que seguem o modelo ritualístico das
obras clássicas. Chico também teve o privilégio de conviver com musicistas e
poetas, amigos de seu pai, do gabarito de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e
Carlos Drummond de Andrade. Além de seu olhar atento e da delicadeza de
traduzir o que via, a convivência com tais sumidades do meio intelectual que
pensavam, questionavam e tentavam traduzir o Brasil através de suas obras,
influenciou o método de sua construção e a interpretação do país por meio de
uma narrativa cancional singular e muito próxima da realidade da época.
Vale
destacar o estranhamento de alguns leitores ao perceberem que o presente texto,
ao se referir ao cantor e compositor, chama-lhe apenas pelo primeiro nome, e
não pelo sobrenome, como é habitual em algumas culturas. Ocorre que, entre os
brasileiros, essa formalidade se faz ausente. Sergio Buarque de Holanda, para
tentar explicar esse fenômeno, criou a teoria do homem cordial, que admite a aversão brasileira à formalidades e a
necessidade de criar laços com o próximo a fim de torna-lo íntimo. Para o
autor, há certa negação do sobrenome, que dá lugar aos apelidos – usuais até
mesmo para dirigir-se a celebridades, como o jogador de futebol “Pelé”.
O
disco intitulado Chico Buarque, de
1984, contém a música Brejo da Cruz, uma de suas obras primas em relação à
descrição do cotidiano carioca do morador do morro que desce para o centro
todos os dias e mantém sua vida de constante exilado. De acordo com Chico, a
feitura de suas canções alia letra e melodia, de modo que uma coisa está
costurada e encontra sentido na outra.
Na
referida canção, o ritmo é incessante. Com apenas dois tons: um mais agudo e
outro mais grave, a harmonia os reveza e constrói uma sequência que lembra um
movimento continuo, como marteladas ou a linha de uma fábrica. Em seguida, o
que quebra a repetição é um som que remete a uma corda se arrebentando, algo
que, aparentemente, acaba com a harmonia contínua. Esta, por sua vez, embora
abafada pelo som estrondoso, volta a imperar na melodia emergindo – com efeito fade in – do som que a interrompeu. A
melodia passa a ideia de retorno, a qual impossibilita qualquer escapatória. É
impossível não vincular o ritmo com a letra e com o tema sobre o qual ela versa
depois de ouvir a canção. A construção de Chico é instigante, porque tudo na
sua música produz algum sentido, nada é em vão.
Segundo
Luiz Tatit, o cancionista é um malabarista, pois equilibra a letra na melodia e
vice-versa, e, assim, constrói sua gestualidade. Chico, ainda que aparente
esforço na construção de sua letras, que seguem modelos de métrica e rima, não
perde a fluidez do gesto, já que sua narrativa pode ser facilmente reconhecida
e ganha sentido com a entoação e com a melodia. Ele é um cantautor, uma vez que estabelece que o compositor deve cantar suas
canções para dar segmento ao gesto estético.
A
letra de Brejo da Cruz, além da tensão que provoca fazendo o receptor
reconhecer, imediatamente, a Zona Sul carioca e, posteriormente, qualquer
centro do Brasil, provoca decantações em sua interpretação, que ganham forma de
tristeza, agonia e certa angústia incapacidade de resolver os problemas alheios.
E, para além do reconhecimento, a letra dessa canção também engendra a aflição
de quem torna o que, em princípio, é exótico, em familiar. Chico parece
construir o lugar dos favelados e, ao ouvir a canção, não é difícil aceitar
isso. Ao começar entoando que: “a novidade que tem no Brejo da Cruz é a
criançada se alimentar de luz”, o cancionista apresenta uma forma estética admirável
– através da rima e dos versos métricos – que contrasta com a crueza dos versos
que ele está dizendo. O mesmo acontece ao longo da canção, que tem caráter
literário, visto que conta várias histórias que desencadeiam para o mesmo fim.
A novidade
Que tem no Brejo da Cruz
É a criançada
Se alimentar de luz
Alucinados
Meninos ficando azuis
E desencarnando
Lá no Brejo da Cruz
Eletrizados
Cruzam os céus do Brasil
Na rodoviária
Assumem formas mil
Uns vendem fumo
Tem uns que viram Jesus
Muito sanfoneiro
Cego tocando blues
Uns têm saudade
E dançam maracatus
Uns atiram pedra
Outros passeiam nus
Mas há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem
São jardineiros
Guardas-noturnos, casais
São passageiros
Bombeiros e babás
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz
São faxineiros
Balançam nas construções
São bilheteiras
Baleiros e garçons
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz
Chico canta como quem observa os que
personagens que ele descreve, como passageiros, guardas-noturnos, refere-se a
“uma gente”, com distanciamento. Nota-se certo paternalismo em suas canções, na
medida em que ele julga que é preciso dar voz à periferia, a qual, em
princípio, teria capacidade de expressar-se sozinha. Atualmente, isso é
condenável porque um dos movimentos mais ativos dos moradores do morro é lutar
pelo seu espaço e afirmar cada vez mais a sua voz, que já pode ser ouvida em
outros ambientes, não só na favela.
Se essa canção aborda, por um lado, a
pobreza e os trabalhadores de rua que descem e sobem o morro e continuam com
uma vida miserável, também trata da ascensão social dos favelados, “que se
disfarçam tão bem” de “casais, passageiros, bombeiros e babás”. Esses cargos,
na canção, representam a ascensão social de quem conseguiu sair da favela e a
camuflagem favorável de se parecer com quem sempre morou no centro da cidade.
Desse modo, Chico toca na ferida da sociedade, que procura ignorar os favelados
e que eles mesmos, quando ascendem, também ignoram a miséria e a fome pela qual
passaram.
O compositor evidencia a negação de identidade
e a necessidade de esquecer o passado sofrido dos trabalhadores que descreve. A
contradição do não reconhecimento da própria história e da tentativa de ignorar
um passado que envergonha, explicita um tipo de preconceito tão estabelecido no
Brasil, que não é só o julgamento alheio, mas o próprio julgamento que condena
o passado pobre de quem ascendeu, como se não pudesse haver orgulho de passar
da miséria para uma vida digna.
Amanda Gomes
Amanda Gomes
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Evoé
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