Segue, abaixo, um texto de Marcelo Rezende publicado no caderno Ilustrada do jornal Folha de São
Paulo do dia 29 de agosto de 1997 falando de William Burroughs. Acho que é um texto capaz de aguçar a curiosidade de quem ainda não conhece a obra deste grande experimentador da prosa americana. Logo após o texto vai um poema do cara.
O
príncipe negro da literatura sobrevive
de Marcelo Rezende
de Marcelo Rezende
Para
sempre, como uma condenação, um viciado. De William Burroughs, o romancista, ator, pintor, panfletário
e poeta, morto no último dia 2 de agosto, aos 83 anos,
a mídia de língua inglesa se lembrará assim.
No
lugar do aventureiro, o heroinômano. Ocupando o espaço
do cultor da prosa experimental, "reinventor" da ficção
científica e herdeiro exaltado do surrealismo, o consumidor
compulsivo de haxixe no Marrocos, de cannabis no México
ou de anfetamina na ensolarada -- para ele quase nunca a luz --
costa da Califórnia.
''Junky''
("Drogado") é então menos um romance, um relato
e uma memória, mas, antes, uma carta de intenções
de quem, pelas escolhas da prosa e da vida, tem a extrema pretensão
de não caber no Ocidente.
O
ano é 1953, em uma década de grandes acontecimentos.
Burroughs já havia matado sua mulher com um tiro, alegando
ter sido um acidente infeliz. Morre também, com o caso,
os restos de sua heterossexualidade relutante. Até o
fim, amará apenas meninos.
O
livro é então caçado e proibido, pois a
ninguém interessa a história de um homem que rouba,
mente e ataca em nome do vício para, no final, aprender
ser a vida o acúmulo de casos sem sentido, decretando
que uma moral só é possível em fábulas
infantis.
Não
é um gênio. Não é o melhor nem mesmo
o único. Seguem seu rastro o poeta Allen Ginsberg (1926-1997)
e o romancista Jack Kerouac (1922-1969). São a ''beat
generation'' e estão infelizes com os EUA da opulência
do pós-guerra e da idéia de uma vida correta.
Um desconforto que pretende oferecer alternativas aos que não
se ajustam aos bons costumes.
Mas
tudo se dissolve nos anos 60. Há agora contracultura,
Beatles, maio de 68 e LSD. Ele sabe que não dará
certo. É impossível, parece-lhe. O mundo está
condenado ao inferno da ditadura infeliz da classe média,
ou do totalitarismo, pensa em Paris, Londres ou na selva latino-americana.
Prevê
doenças assassinas. Espera o dia em que os governos possam
controlar a mente de seus cidadãos, pois para Burroughs
a linguagem é um vírus.
Passa
então dias errando pelo deserto com uma espingarda, atirando
para o alto. Burroughs, o paranóico. O ''Noam Chomsky
do submundo''. O admirado e pouco lido ''príncipe negro''
da literatura norte-americana.
Mas
sobrevive. Atravessa as décadas e assiste a um show de
oportunismo com seu nome. Escreverá ''The Western Lands''
(1987), outra obra máxima após ''Almoço
Nu'' (1959), e outras tantas, sempre lançadas em silêncio,
seguirão depois.
É fotografado ao lado de bandas de rock, cantores de rap, cineastas e artistas performáticos. Sorri para a imprensa e ensina aos novatos a arte da dissimulação. Aparece na TV de seu país em um comercial para uma marca japonesa de tênis. A frase, na tela, é profética: ''Eu acredito em alta tecnologia''.
É fotografado ao lado de bandas de rock, cantores de rap, cineastas e artistas performáticos. Sorri para a imprensa e ensina aos novatos a arte da dissimulação. Aparece na TV de seu país em um comercial para uma marca japonesa de tênis. A frase, na tela, é profética: ''Eu acredito em alta tecnologia''.
Sobre
seu rosto, uma sucessão de imagens da história
do homem no século 20. A Segunda Guerra Mundial, a chegada
à Lua. Burroughs com um terno negro e um chapéu.
Uma figura sinistra.
Pouco
antes da morte, dizia adorar apenas os gatos que circulavam
por sua casa e pensava profundamente sobre caviar.
Sentia horror por uma sociedade que criava estado policial para controlar o desejo de fumar um cigarro no trabalho, bar e restaurante. Duvidava da qualidade da vida. Tinha fé apenas em si mesmo.
Sentia horror por uma sociedade que criava estado policial para controlar o desejo de fumar um cigarro no trabalho, bar e restaurante. Duvidava da qualidade da vida. Tinha fé apenas em si mesmo.
dia de ação de graças, 28 de novembro de 1986
agradeço pelo peru selvagem e os pombos passageiros, destinados a virar merda nas saudáveis tripas americanas.
agradeço por um continente a espoliar e envenenar.
agradeço pelos índios por garantirem uma módica dose de desafio e perigo.
agradeço pelas vastas manadas de bisões para matar e depelar e depois deixar as suas carcaças à putrefação.
agradeço pelos troféus de caça de lobos e coiotes.
agradeço pelo sonho americano, por inventar lorotas até que elas brilhem à luz do dia.
agradeço pela klu klux klan. aos policiais que matam negros e os contabilizam. às decentes beatas de igreja com suas mesquinhas, interesseiras, feias e perversas caras.
agradeço pelos adesivos de “mate uma bicha em nome de jesus cristo".
agradeço pela aids de laboratório.
agradeço pela proibição e pela guerra contra as drogas.
agradeço por um país onde a ninguém é permitido cuidar da seus próprios problemas.
agradeço por uma nação de dedos-duros.
agradeço, sim, todas as lembranças – ok, deixa eu ver o que você tem nas mãos!
você foi sempre uma dor de cabeça e uma encheção de saco.
agradeço pela última e maior traição do último e maior sonho dos sonhos humanos.
(tradução de Leo Gonçalves)
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