sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Van Gogh, o suicidado pela sociedade


                                                        


Antonin Artaud ao defender outros malditos se revelava sempre um escritor apaixonado. Escrevia, me parece, movido por um forte impulso de indignação, isso porque o que defendia eram ideias com as quais se identificava profundamente;  ideias que eram, digamos, corpo do seu corpo.
Em Van Gogh, o suicidado pela sociedade, ensaio publicado em 1947, Artaud (que no decorrer de sua vida foi internado em vários manicômios, chegando inclusive a receber eletrochoques para tratar de seus delírios) defende com palavras – que valem por unhas e dentes – a não loucura do pintor holandês. Para ele "... Van Gogh não era louco; ou então ele o era no sentido desta autêntica alienação que a sociedade e os psiquiatras querem ignorar, sociedade que confunde escrita com texto, ela que tacha de loucura visões exorbitadas de seus artistas e sufoca seus gritos no papel impresso: foi assim que calaram Baudelaire, Edgar Alan Poe, Gerard de Nerval e o impensável Conde de Lautréamont. Porque tiveram medo que suas poesias saíssem dos livros e revertessem a realidade."
É o autêntico grito do condenado. Condenado que usa o martírio de outro condenado como instrumento de denúncia.  É ao mesmo tempo um intenso suspiro poético.

Abaixo o trecho onde o autor interpreta a tela Campo de Trigo com Corvos com a espantosa empatia que vibra em cada linha do texto. Certamente ninguém mais faria isso com tanto conhecimento dos mecanismos da criação artística. Só um grande criador para entender outro.

"Os corvos pintados por ele, dois dias antes da sua morte, não lhe abriram as portas de certa glória póstuma, como tampouco o fizeram suas demais telas, mas abrem para a pintura pintada, ou melhor, para a natureza não-pintada, a porta oculta de um mais-além possível, de uma permanente realidade possível através da porta aberta por Van Gogh para um enigmático e sinistro mais-além. Não é comum ver um homem, com o balaço que o matou já no seu ventre, povoar uma tela de corvos negros sobre uma espécie de campo talvez lívido, em todo caso vazio, no qual a cor de borra de vinho da terra se confronta violentamente com o amarelo sujo do trigo. Mas nenhum outro pintor além de Van Gogh teria achado, como ele o fez para pintar seus corvos, esse negro de trufa, esse negro de “banquete faustoso” e, ao mesmo, tempo, como que excremencial das asas dos corvos surpreendidos pelo resplendor declinante do crepúsculo. E do que se queixa a terra sob as asas dos faustosos corvos, sem dúvida faustosos só para Van Gogh, suntuosos augúrios de um mal que já não o afetará? Pois ninguém, até então, havia conseguido converter a terra nesse trapo sujo empapado de vinho e sangue. O céu do quadro é muito baixo, aplastrado, violáceo como as margens do raio. A insólita franja tenebrosa do vazio que se ergue atrás do relâmpago. Van Gogh soltou seus corvos, como se fossem os micróbios negros do seu braço de suicida, a poucos centímetros do alto e como se viessem por baíxo da tela, seguindo o negro talho da linha onde o bater da sua soberba plumagem acrescenta ao turbilhão da tormenta terrestre as ameaças de uma sufocação vinda do alto. E contudo o quadro é soberbo. Soberbo, suntuoso e sereno quadro."

                             
                                                          Campo de Trigo com Corvos
                                                       Vincent Van Gogh (julho de 1890)




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