Pelo
desígnio dos deuses ou pela estrela de seu destino o homem se transforma em
animal, em planta ou objeto. Mas esse animal, planta ou objeto portará consigo
para sempre um elemento diferenciador: um traço de humanidade calado.
Inúmeras
obras abordam o tema metamorfose na literatura de diversas partes do mundo. Nos
mitos de criação de diferentes culturas, vemos a presença do processo de
metamorfose servindo à finalidade de explicar a origem de algo ou de educar a
respeito de um assunto. De acordo com Bakthin (1993, p. 235), “a metamorfose
(transformação) – basicamente, transformação humana – junto com a identidade
(basicamente, também, identidade do homem) pertence ao acervo do folclore
mundial pré-clássico”.
A palavra metamorfose tem sua origem no grego
(“μεταμόρφωσις” - “metamórṗhosis”),
em que “meta” designa “mudança, posteridade” e “morfose” tem raiz em
“morfe” que significa “forma”, segundo Coutinho (2011, p. 179). O termo é
também utilizado pela Biologia para intitular o processo de transformação que
alguns animais sofrem de um estágio de seu crescimento a outro.
O usa
da palavra metamorfose nos remete à literatura grega. Através de Homero, em Odisseia, vemos os companheiros de
Ulisses sofrerem metamorfose provocada por Circe, que os transforma em porcos, nesse caso, possível de ser revertida devido à astúcia de Ulisses, com a
ajuda de Hermes, ao enganar a feiticeira. Em Ovídio, em sua obra Metamorfoses, somos expostos a diversos
textos em que personagens sofrem o processo de transformação, como é o caso de
Aracne, exímia tecelã que, após desafiar a deusa Palas Atena, é metamorfoseada
em aranha. Também, Píramo e Tisbe, a causa de seu infortuno destino, por piedade dos deuses, são transformados em amoreira.
O
processo de metamorfose pode ou não ser revertido, pode ser instrumento divino
para obter algo (como é caso de Zeus que se transforma em chuva de ouro para se
unir a Danae), e, em grande número dos casos, é um castigo, geralmente da ordem
do divino, devido a alguma transgressão.
Em
“Sonhos de uma noite de verão”, do dramaturgo William Shakespeare, a
metamorfose surge como um castigo à rebeldia de Titânia, que não quer entregar
a Oberon o menino que está sob seus cuidados. Oberon, representando o demiurgo
da peça, então ordena que Bute derrame nos olhos de Titânia adormecida uma
poção que a fará se apaixonar pelo primeiro ser que olhar. No meio do percurso,
Bute, em uma de suas peraltices, transforma a cabeça de um dos atores que
ensaiava nas proximidades na de um burro e logo o encaminha a Titânia, que,
enfeitiçada, apaixona-se perdidamente. Assim que o feitiço é desfeito, o ator
volta a sua forma original e Titânia recobra a consciência. Dessa forma, a
metamorfose, nessa peça de Shakespeare, é imbuída pelo elemento cômico,
diferente das citadas em Homero e Ovídio.
A obra “A metamorfose”, novela de Franz Kafka,
escrita em 1912, tecida com fios do Surrealismo e traços do Expressionismo e
que construiu as bases do Realismo Mágico, deparamo-nos com a temática da
metamorfose. Diferente das histórias de
Homero, Ovídio e Shakespeare, nas quais vemos o processo de metamorfose
acontecer, temos a ciência de seus motivos e seus desenrolares ocorrem entre o
meio e o final do texto, a obra de Kafka subverte esse modelo. A narrativa
altera a ordem usual ao começar pelo clímax, com a transformação do personagem
Gregor Samsa em um inseto já efetivada. Não sabemos como isso aconteceu ao
personagem, apenas que é um fato irreversível. Gregor, no início da trama,
ainda traz consigo sua consciência de humano, já que está ciente do ocorrido e,
ao longo do enredo, preocupa-se com a irmã, a família e seu emprego.
Entretanto, essa consciência vai se desvanecendo cada vez mais, até sumirem os
últimos resquícios de sua humanidade.
Outra
questão a se destacar é que Gregor, apesar da estranheza inicial, não se
preocupa em questionar sobre sua transformação ou sobre um modo de voltar à sua
forma original, como se o inseto já estivesse internalizado nele antes mesmo da
efetivação da mudança de forma. Uma situação interessante na sua metamorfose é
que, de certa forma, esta reage à interação da família com Gregor. No início a
família estranha (Gregor ainda está conectado à sua consciência humana e vive a
rejeição dos familiares), depois, tenta aceitar a transformação (Gregor se
preocupa com a situação da família), por fim, o excluí e renega (o inseto, aos
poucos, vai se tornando mais forte que o humano que está abalado
psicologicamente). Essa mesma questão da interação entre alguém e o
metamorfoseado afetar na metamorfose pode ser vista no poema A Rosa do Mato, de Antônio Dinis –
Araciba, transformada em flor, muda a matiz de suas pétalas na presença do
amado.
Quanto
à razão da mutação de Gregor, sabemos que não é um castigo da ordem do divino. Diferente
dos exemplos de metamorfose citados anteriormente, em Kafka não existe uma
interferência do divino atuando no processo de metamorfose, ela simplesmente
acontece. Além disso, Gregor está mais preocupado com questões da ordem do
cotidiano do que com a própria metamorfose, ele se posiciona como um misto
entre humano e inseto, mantém a consciência e é capaz de perceber as diferenças
que operam em seu corpo a ponto de até estabelecer paralelos entre o antes e o
agora. Assim, podemos constatar que tanto o narrador quanto o próprio Gregor
tratam a metamorfose como algo que beira o insignificante.
Em uma
análise mais densa da história, podemos entender a metamorfose como um símbolo
do indivíduo ou mesmo da sociedade que se entrega ao sistema de um capitalismo
extremo do contexto da época, mesmo que para isso exerça uma profissão ou
posição que não traga realizações pessoais. Nesse caso, o inseto monstruoso e
nojento já está instalado na interioridade do indivíduo. Entretanto, por outro
viés, somente após a transformação de Gregor vemos que ele é liberto de suas
obrigações familiares e do trabalho. A transformação de Gregor pode ser vista
também como um ato de subversão ao sistema – com o que podemos traçar um
paralelo em ralação à arte, que subverte o sistema em vez de o alimentar. Essa
arte causa por vezes repulsa e estranheza, mas traz em suas estranhas um
potencial reflexivo e diferentes horizontes de expectativas.
Por
fim, também podemos refletir que o processo de metamorfose em Kafka evoca a
ideia de migrações e do estrangeiro. Há a migração de posição na vida familiar,
antes e depois da metamorfose. Gregor antes da transformação é essencial para
família, em seguida seu papel é visto somente como uma obrigação e, ao final,
após a transformação, é rejeitado. Essa migração de posição por causa da
migração de forma torna Gregor um estrangeiro no próprio lar. A metamorfose o
afasta de sua humanidade, rompe seus laços e sua importância, a família já não
o reconhece mais, o ambiente se torna inóspito e desconhecido à medida que os
sentidos do inseto se sobrepõem ao que resta do humano. Finalmente, resta o
profundo sentimento de solidão e exclusão, sensações que são geralmente
vivenciadas pelo estrangeiro, um ser que habita o “entre lugares”.
Pela
ação dos deuses ou por um fado do destino, o humano se transmuta em animal, em
planta ou objeto. Mesmo que o tempo insista em apagar, e mesmo que a nova
natureza o tome e não exista formas de voltar ao que se era, um traço de
humanidade em resistência permanece.
Programa de Pós-Graduação da Letras da UFRGS
Disciplina: Formas Literárias e Processo Histórico – Prosa
Trabalho: Ensaio sobre interpretação da metamorfose em Kafka
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Evoé
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