terça-feira, 31 de outubro de 2017

Sobre as metamorfoses e A Metamorfose



Pelo desígnio dos deuses ou pela estrela de seu destino o homem se transforma em animal, em planta ou objeto. Mas esse animal, planta ou objeto portará consigo para sempre um elemento diferenciador: um traço de humanidade calado.
Inúmeras obras abordam o tema metamorfose na literatura de diversas partes do mundo. Nos mitos de criação de diferentes culturas, vemos a presença do processo de metamorfose servindo à finalidade de explicar a origem de algo ou de educar a respeito de um assunto. De acordo com Bakthin (1993, p. 235), “a metamorfose (transformação) – basicamente, transformação humana – junto com a identidade (basicamente, também, identidade do homem) pertence ao acervo do folclore mundial pré-clássico”. 
 A palavra metamorfose tem sua origem no grego (“μεταμόρφωσις” - “metamórṗhosis”), em que “meta” designa “mudança, posteridade” e “morfose” tem raiz em “morfe” que significa “forma”, segundo Coutinho (2011, p. 179). O termo é também utilizado pela Biologia para intitular o processo de transformação que alguns animais sofrem de um estágio de seu crescimento a outro.
O usa da palavra metamorfose nos remete à literatura grega. Através de Homero, em Odisseia, vemos os companheiros de Ulisses sofrerem metamorfose provocada por Circe, que os transforma em porcos, nesse caso, possível de ser revertida devido à astúcia de Ulisses, com a ajuda de Hermes, ao enganar a feiticeira. Em Ovídio, em sua obra Metamorfoses, somos expostos a diversos textos em que personagens sofrem o processo de transformação, como é o caso de Aracne, exímia tecelã que, após desafiar a deusa Palas Atena, é metamorfoseada em aranha. Também, Píramo e Tisbe, a causa de seu infortuno destino, por piedade dos deuses, são transformados em amoreira.
O processo de metamorfose pode ou não ser revertido, pode ser instrumento divino para obter algo (como é caso de Zeus que se transforma em chuva de ouro para se unir a Danae), e, em grande número dos casos, é um castigo, geralmente da ordem do divino, devido a alguma transgressão.
Em “Sonhos de uma noite de verão”, do dramaturgo William Shakespeare, a metamorfose surge como um castigo à rebeldia de Titânia, que não quer entregar a Oberon o menino que está sob seus cuidados. Oberon, representando o demiurgo da peça, então ordena que Bute derrame nos olhos de Titânia adormecida uma poção que a fará se apaixonar pelo primeiro ser que olhar. No meio do percurso, Bute, em uma de suas peraltices, transforma a cabeça de um dos atores que ensaiava nas proximidades na de um burro e logo o encaminha a Titânia, que, enfeitiçada, apaixona-se perdidamente. Assim que o feitiço é desfeito, o ator volta a sua forma original e Titânia recobra a consciência. Dessa forma, a metamorfose, nessa peça de Shakespeare, é imbuída pelo elemento cômico, diferente das citadas em Homero e Ovídio.
 A obra “A metamorfose”, novela de Franz Kafka, escrita em 1912, tecida com fios do Surrealismo e traços do Expressionismo e que construiu as bases do Realismo Mágico, deparamo-nos com a temática da metamorfose.  Diferente das histórias de Homero, Ovídio e Shakespeare, nas quais vemos o processo de metamorfose acontecer, temos a ciência de seus motivos e seus desenrolares ocorrem entre o meio e o final do texto, a obra de Kafka subverte esse modelo. A narrativa altera a ordem usual ao começar pelo clímax, com a transformação do personagem Gregor Samsa em um inseto já efetivada. Não sabemos como isso aconteceu ao personagem, apenas que é um fato irreversível. Gregor, no início da trama, ainda traz consigo sua consciência de humano, já que está ciente do ocorrido e, ao longo do enredo, preocupa-se com a irmã, a família e seu emprego. Entretanto, essa consciência vai se desvanecendo cada vez mais, até sumirem os últimos resquícios de sua humanidade.
Outra questão a se destacar é que Gregor, apesar da estranheza inicial, não se preocupa em questionar sobre sua transformação ou sobre um modo de voltar à sua forma original, como se o inseto já estivesse internalizado nele antes mesmo da efetivação da mudança de forma. Uma situação interessante na sua metamorfose é que, de certa forma, esta reage à interação da família com Gregor. No início a família estranha (Gregor ainda está conectado à sua consciência humana e vive a rejeição dos familiares), depois, tenta aceitar a transformação (Gregor se preocupa com a situação da família), por fim, o excluí e renega (o inseto, aos poucos, vai se tornando mais forte que o humano que está abalado psicologicamente). Essa mesma questão da interação entre alguém e o metamorfoseado afetar na metamorfose pode ser vista no poema A Rosa do Mato, de Antônio Dinis – Araciba, transformada em flor, muda a matiz de suas pétalas na presença do amado.
Quanto à razão da mutação de Gregor, sabemos que não é um castigo da ordem do divino. Diferente dos exemplos de metamorfose citados anteriormente, em Kafka não existe uma interferência do divino atuando no processo de metamorfose, ela simplesmente acontece. Além disso, Gregor está mais preocupado com questões da ordem do cotidiano do que com a própria metamorfose, ele se posiciona como um misto entre humano e inseto, mantém a consciência e é capaz de perceber as diferenças que operam em seu corpo a ponto de até estabelecer paralelos entre o antes e o agora. Assim, podemos constatar que tanto o narrador quanto o próprio Gregor tratam a metamorfose como algo que beira o insignificante.
Em uma análise mais densa da história, podemos entender a metamorfose como um símbolo do indivíduo ou mesmo da sociedade que se entrega ao sistema de um capitalismo extremo do contexto da época, mesmo que para isso exerça uma profissão ou posição que não traga realizações pessoais. Nesse caso, o inseto monstruoso e nojento já está instalado na interioridade do indivíduo. Entretanto, por outro viés, somente após a transformação de Gregor vemos que ele é liberto de suas obrigações familiares e do trabalho. A transformação de Gregor pode ser vista também como um ato de subversão ao sistema – com o que podemos traçar um paralelo em ralação à arte, que subverte o sistema em vez de o alimentar. Essa arte causa por vezes repulsa e estranheza, mas traz em suas estranhas um potencial reflexivo e diferentes horizontes de expectativas.
Por fim, também podemos refletir que o processo de metamorfose em Kafka evoca a ideia de migrações e do estrangeiro. Há a migração de posição na vida familiar, antes e depois da metamorfose. Gregor antes da transformação é essencial para família, em seguida seu papel é visto somente como uma obrigação e, ao final, após a transformação, é rejeitado. Essa migração de posição por causa da migração de forma torna Gregor um estrangeiro no próprio lar. A metamorfose o afasta de sua humanidade, rompe seus laços e sua importância, a família já não o reconhece mais, o ambiente se torna inóspito e desconhecido à medida que os sentidos do inseto se sobrepõem ao que resta do humano. Finalmente, resta o profundo sentimento de solidão e exclusão, sensações que são geralmente vivenciadas pelo estrangeiro, um ser que habita o “entre lugares”.
Pela ação dos deuses ou por um fado do destino, o humano se transmuta em animal, em planta ou objeto. Mesmo que o tempo insista em apagar, e mesmo que a nova natureza o tome e não exista formas de voltar ao que se era, um traço de humanidade em resistência permanece.  



Autora: Michelle C. Buss 
Programa de Pós-Graduação da Letras da UFRGS
Disciplina: Formas Literárias e Processo Histórico – Prosa 
Trabalho: Ensaio sobre interpretação da metamorfose em Kafka


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Evoé
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terça-feira, 3 de outubro de 2017

Não mais lascar, fundir!: análise do poema "Olimpíadas na Idade da Pedra" como um ato de recriação tradutória

Amanhã, dia 4/10, no Instituto de Letras da UFRGS, às 14h, eu e a Marianna Ilgenfritz Daudt estaremos falando sobre o processo de tradução de um dos poemas da escritora Tawada Yôko na III Semana de Estudos de Tradução da UFRGS.
Para quem gosta de poesia, fica o convite! A entrada é gratuita! Evoé!



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Evóe
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Paixão é uma reação química que desestrutura todas as geometrias internas. A pele reage ao menor toque do olhar e a lembrança é uma centelha de fogo que principia em incêndio.
Todos os sentidos se desfazem e então novos se constroem, é fênix com outras penas, outra cor.
Mente em ebulição...
Paixão é uma substância que queima e faz o espírito entrar em combustão.
A respiração acelera, a pupila se dilata, a garganta sente sede, o corpo oscila entre um dia calmo de outono e a efervescência de uma tarde primaveril.
O peito geme, sorri bobo e teme o abandono.
Energia ascendente que se enrola na alma e vibra em laranja, rubi e dourado.
Paixão é um oriente de mistérios.
A ansiedade que inquieta as horas.
E ninguém pode entende-la porque ela foi feita para apenas ser sentida.
Atração magnética de um abraço.
O verbo que silencia nos lábios e rompe no olhar...
A sintonia de corpos, a descoberta de almas.
Paixão sozinha castiga porque é sedenta e prefere dois.
Dois que então se funde em um: alquimia.
Paixão é uma noite que respira sândalos e canta cantigas de fogo.
Não dorme, quer mais.
Paixão é o pulso e o impulso, o sublime que se abstrai em sussurro.
Paixão quando a dois é água que jorra em fontes de ouro. Jardim grego que abriga a conjunção de Eros e Psique.
É a canção mais doce, constelação de poemas que constelam vidas e versejam anseios.
É o tudo que se conflui ao nada e vira tudo outra vez
Paixão. Passione. Passion. Pasion. Passionis.
A língua de fogo na boca dos homens.



(Michelle C. Buss. Poema presente no livro Mosaicos, p. 26-27)



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Evoé
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