quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A FALECIDA ou NENHUMA MULHER DEVIA PERTENCER A HOMEM NENHUM





Espetáculo de conclusão da Oficina de Montagem da Cia Teatrofídico baseada na obra A FALECIDA de Nelson Rodrigues.
Durante 04 meses os oficinandos experimentaram o processo de criação de um espetáculo em sua totalidade: improvisação, exercícios de desinibição, consciência corporal, dinâmicas coletivas, espacialidade, respiração e uso do texto dramatúrgico.
A encenação propõe que os atores estejam o tempo todo atuando e que troquem de personagens.
O foco foi o trabalho coletivo e as técnicas que possibilitam a compreensão do que está sendo feito em cena.
No primeiro mês foram trabalhados os exercícios de integração e sensibilização corporal tendo prioridade conscientizar sobre o próprio corpo. Nos três meses seguintes a prática de ensaios tomou à frente com a construção dos personagens e marcação das cenas.
A Falecida é o primeiro texto das ditas TRAGÉDIAS CARIOCAS, onde o Nelson Rodrigues coloca pela primeira vez o subúrbio do Rio de Janeiro como pano de fundo na construção dramatúrgica.

FICHA TÉCNICA:

Autor: Nelson Rodrigues
Direção: Eduardo Kraemer e Renato Del Campão
Atuação: André Dewes, Roberta Turski João Petrillo, Michelle C. Buss e Ricardo de Almeida
Contraregragem: Lucas Mendes
Realização: Cia Teatrofídico e Cia de Arte
Quando: dias 06 e 07/11, às 21h
Onde: Teatro da Cia de Arte
Valor do ingresso: R$ 20,00

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Sobre as metamorfoses e A Metamorfose



Pelo desígnio dos deuses ou pela estrela de seu destino o homem se transforma em animal, em planta ou objeto. Mas esse animal, planta ou objeto portará consigo para sempre um elemento diferenciador: um traço de humanidade calado.
Inúmeras obras abordam o tema metamorfose na literatura de diversas partes do mundo. Nos mitos de criação de diferentes culturas, vemos a presença do processo de metamorfose servindo à finalidade de explicar a origem de algo ou de educar a respeito de um assunto. De acordo com Bakthin (1993, p. 235), “a metamorfose (transformação) – basicamente, transformação humana – junto com a identidade (basicamente, também, identidade do homem) pertence ao acervo do folclore mundial pré-clássico”. 
 A palavra metamorfose tem sua origem no grego (“μεταμόρφωσις” - “metamórṗhosis”), em que “meta” designa “mudança, posteridade” e “morfose” tem raiz em “morfe” que significa “forma”, segundo Coutinho (2011, p. 179). O termo é também utilizado pela Biologia para intitular o processo de transformação que alguns animais sofrem de um estágio de seu crescimento a outro.
O usa da palavra metamorfose nos remete à literatura grega. Através de Homero, em Odisseia, vemos os companheiros de Ulisses sofrerem metamorfose provocada por Circe, que os transforma em porcos, nesse caso, possível de ser revertida devido à astúcia de Ulisses, com a ajuda de Hermes, ao enganar a feiticeira. Em Ovídio, em sua obra Metamorfoses, somos expostos a diversos textos em que personagens sofrem o processo de transformação, como é o caso de Aracne, exímia tecelã que, após desafiar a deusa Palas Atena, é metamorfoseada em aranha. Também, Píramo e Tisbe, a causa de seu infortuno destino, por piedade dos deuses, são transformados em amoreira.
O processo de metamorfose pode ou não ser revertido, pode ser instrumento divino para obter algo (como é caso de Zeus que se transforma em chuva de ouro para se unir a Danae), e, em grande número dos casos, é um castigo, geralmente da ordem do divino, devido a alguma transgressão.
Em “Sonhos de uma noite de verão”, do dramaturgo William Shakespeare, a metamorfose surge como um castigo à rebeldia de Titânia, que não quer entregar a Oberon o menino que está sob seus cuidados. Oberon, representando o demiurgo da peça, então ordena que Bute derrame nos olhos de Titânia adormecida uma poção que a fará se apaixonar pelo primeiro ser que olhar. No meio do percurso, Bute, em uma de suas peraltices, transforma a cabeça de um dos atores que ensaiava nas proximidades na de um burro e logo o encaminha a Titânia, que, enfeitiçada, apaixona-se perdidamente. Assim que o feitiço é desfeito, o ator volta a sua forma original e Titânia recobra a consciência. Dessa forma, a metamorfose, nessa peça de Shakespeare, é imbuída pelo elemento cômico, diferente das citadas em Homero e Ovídio.
 A obra “A metamorfose”, novela de Franz Kafka, escrita em 1912, tecida com fios do Surrealismo e traços do Expressionismo e que construiu as bases do Realismo Mágico, deparamo-nos com a temática da metamorfose.  Diferente das histórias de Homero, Ovídio e Shakespeare, nas quais vemos o processo de metamorfose acontecer, temos a ciência de seus motivos e seus desenrolares ocorrem entre o meio e o final do texto, a obra de Kafka subverte esse modelo. A narrativa altera a ordem usual ao começar pelo clímax, com a transformação do personagem Gregor Samsa em um inseto já efetivada. Não sabemos como isso aconteceu ao personagem, apenas que é um fato irreversível. Gregor, no início da trama, ainda traz consigo sua consciência de humano, já que está ciente do ocorrido e, ao longo do enredo, preocupa-se com a irmã, a família e seu emprego. Entretanto, essa consciência vai se desvanecendo cada vez mais, até sumirem os últimos resquícios de sua humanidade.
Outra questão a se destacar é que Gregor, apesar da estranheza inicial, não se preocupa em questionar sobre sua transformação ou sobre um modo de voltar à sua forma original, como se o inseto já estivesse internalizado nele antes mesmo da efetivação da mudança de forma. Uma situação interessante na sua metamorfose é que, de certa forma, esta reage à interação da família com Gregor. No início a família estranha (Gregor ainda está conectado à sua consciência humana e vive a rejeição dos familiares), depois, tenta aceitar a transformação (Gregor se preocupa com a situação da família), por fim, o excluí e renega (o inseto, aos poucos, vai se tornando mais forte que o humano que está abalado psicologicamente). Essa mesma questão da interação entre alguém e o metamorfoseado afetar na metamorfose pode ser vista no poema A Rosa do Mato, de Antônio Dinis – Araciba, transformada em flor, muda a matiz de suas pétalas na presença do amado.
Quanto à razão da mutação de Gregor, sabemos que não é um castigo da ordem do divino. Diferente dos exemplos de metamorfose citados anteriormente, em Kafka não existe uma interferência do divino atuando no processo de metamorfose, ela simplesmente acontece. Além disso, Gregor está mais preocupado com questões da ordem do cotidiano do que com a própria metamorfose, ele se posiciona como um misto entre humano e inseto, mantém a consciência e é capaz de perceber as diferenças que operam em seu corpo a ponto de até estabelecer paralelos entre o antes e o agora. Assim, podemos constatar que tanto o narrador quanto o próprio Gregor tratam a metamorfose como algo que beira o insignificante.
Em uma análise mais densa da história, podemos entender a metamorfose como um símbolo do indivíduo ou mesmo da sociedade que se entrega ao sistema de um capitalismo extremo do contexto da época, mesmo que para isso exerça uma profissão ou posição que não traga realizações pessoais. Nesse caso, o inseto monstruoso e nojento já está instalado na interioridade do indivíduo. Entretanto, por outro viés, somente após a transformação de Gregor vemos que ele é liberto de suas obrigações familiares e do trabalho. A transformação de Gregor pode ser vista também como um ato de subversão ao sistema – com o que podemos traçar um paralelo em ralação à arte, que subverte o sistema em vez de o alimentar. Essa arte causa por vezes repulsa e estranheza, mas traz em suas estranhas um potencial reflexivo e diferentes horizontes de expectativas.
Por fim, também podemos refletir que o processo de metamorfose em Kafka evoca a ideia de migrações e do estrangeiro. Há a migração de posição na vida familiar, antes e depois da metamorfose. Gregor antes da transformação é essencial para família, em seguida seu papel é visto somente como uma obrigação e, ao final, após a transformação, é rejeitado. Essa migração de posição por causa da migração de forma torna Gregor um estrangeiro no próprio lar. A metamorfose o afasta de sua humanidade, rompe seus laços e sua importância, a família já não o reconhece mais, o ambiente se torna inóspito e desconhecido à medida que os sentidos do inseto se sobrepõem ao que resta do humano. Finalmente, resta o profundo sentimento de solidão e exclusão, sensações que são geralmente vivenciadas pelo estrangeiro, um ser que habita o “entre lugares”.
Pela ação dos deuses ou por um fado do destino, o humano se transmuta em animal, em planta ou objeto. Mesmo que o tempo insista em apagar, e mesmo que a nova natureza o tome e não exista formas de voltar ao que se era, um traço de humanidade em resistência permanece.  



Autora: Michelle C. Buss 
Programa de Pós-Graduação da Letras da UFRGS
Disciplina: Formas Literárias e Processo Histórico – Prosa 
Trabalho: Ensaio sobre interpretação da metamorfose em Kafka


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Evoé
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terça-feira, 3 de outubro de 2017

Não mais lascar, fundir!: análise do poema "Olimpíadas na Idade da Pedra" como um ato de recriação tradutória

Amanhã, dia 4/10, no Instituto de Letras da UFRGS, às 14h, eu e a Marianna Ilgenfritz Daudt estaremos falando sobre o processo de tradução de um dos poemas da escritora Tawada Yôko na III Semana de Estudos de Tradução da UFRGS.
Para quem gosta de poesia, fica o convite! A entrada é gratuita! Evoé!



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Evóe
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Paixão é uma reação química que desestrutura todas as geometrias internas. A pele reage ao menor toque do olhar e a lembrança é uma centelha de fogo que principia em incêndio.
Todos os sentidos se desfazem e então novos se constroem, é fênix com outras penas, outra cor.
Mente em ebulição...
Paixão é uma substância que queima e faz o espírito entrar em combustão.
A respiração acelera, a pupila se dilata, a garganta sente sede, o corpo oscila entre um dia calmo de outono e a efervescência de uma tarde primaveril.
O peito geme, sorri bobo e teme o abandono.
Energia ascendente que se enrola na alma e vibra em laranja, rubi e dourado.
Paixão é um oriente de mistérios.
A ansiedade que inquieta as horas.
E ninguém pode entende-la porque ela foi feita para apenas ser sentida.
Atração magnética de um abraço.
O verbo que silencia nos lábios e rompe no olhar...
A sintonia de corpos, a descoberta de almas.
Paixão sozinha castiga porque é sedenta e prefere dois.
Dois que então se funde em um: alquimia.
Paixão é uma noite que respira sândalos e canta cantigas de fogo.
Não dorme, quer mais.
Paixão é o pulso e o impulso, o sublime que se abstrai em sussurro.
Paixão quando a dois é água que jorra em fontes de ouro. Jardim grego que abriga a conjunção de Eros e Psique.
É a canção mais doce, constelação de poemas que constelam vidas e versejam anseios.
É o tudo que se conflui ao nada e vira tudo outra vez
Paixão. Passione. Passion. Pasion. Passionis.
A língua de fogo na boca dos homens.



(Michelle C. Buss. Poema presente no livro Mosaicos, p. 26-27)



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Evoé
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segunda-feira, 3 de julho de 2017

OFICINA DE MONTAGEM - A Falecida de Nelson Rodrigues




OFICINA DE MONTAGEM
O OBJETO SE TORNA ATOR
MÓDULO INICIANTES
A FALECIDA/NELSON RODRIGUES
DE 03/07 À 27/09/2017
SEGUNDAS E QUARTAS DAS 19H ÀS 21:30
CIA DE ARTE, ANDRADAS 1780.
 

Curso aberto à qualquer pessoa - com idade mínima de 15 anos, com ou sem experiência anterior - com objetivo de utilização da linguagem teatral como exercício de potencial criativo, utilização do sensorial,comunicabilidade, desinibição e expressividade.
A metodologia propõe técnicas de relaxamento e sensibilização, método de ações físicas,
jogos teatrais diversos, busca de linguagem comum com interpretação ou improvisação,
construção de personagem e montagem final do texto A FALECIDA de Nelson Rodrigues.
Referências:
STANISLAVSKI, PETER BROOK, MARCIO VIANNA, AUGUSTO BOAL,ARIANNE MNOUCHKINE E MATTEO BONFITTO.

RENATO DEL CAMPÃO
MELHOR ATOR AÇORIANOS 2015
Trabalha como ator e diretor teatral há 30 anos. Ministra oficinas de teatro à 15 anos.
Sua oficina já abrigou de grupos populares pelo Projeto Descentralização da Cultura, até outros reunidos no SESI,
Sogipa, Pólo Petroquímico e particulares, como empresários, profissionais liberais e comunicadores.
No seu currículo teatral somam-se quase 60 espetáculos (entre eles: Inimigos de Classe, Navalha na Carne, Espancando a Empregada,
No Tempo do Onça, Rede Nacional de Intrigas, Clubber, Eu Sei O Que Vocês Dublaram no Verão Passado,
Eu Ainda Sei ... , Eu Continuo Sabendo ... , Histórias Tatuadas , Alice Maravilha
,Bonecas à Beira de um Ataque de Risos,Jogos na Hora da Sesta,Caio de Boca e Alma,O Anjo Exterminador,Apareceu a Margarida , A Serpente e Cadarço de Sapato.)
Tem passagens pelo mercado publicitário, televisão (Memorial de Maria Moura) e cinema ( O Homem Que Copiava, direção de Jorge Furtado).
Lançou o livro A Comédia Negra, reunindo comédias escritas por ele nas décadas de 80 e 90.
EDUARDO KRAEMER
MELHOR DIRETOR AÇORIANOS 2015
É diretor teatral a 18 anos e dirige a Cia Teatrofídico a 13, onde produziu e encenou mais de 15 espetáculos reconhecidos pelo público e pela crítica, como Jogos na Hora da Sesta, vencedor do Açorianos 2014 Melhor Iluminação e indicado a Melhor ator(Renato Del Campão);Caio de Boca e Alma de Caio Fernando Abreu;Eu preciso aprender a ser só, vencedor Açorianos 2005 Melhor Trilha Sonora Adaptada e idicado a Melhor Atriz(Saionara Sosa) e Melhor Cenografia;A Serpente de Nelson Rodrigues, também idicado a Melhor Ator(Renato Del Campão);Apareceu a Margarida indicado a Melhor Ator(Renato Del Campão) e em 2015 Cadarço de Sapato ou ninguém está acima da redenção vencedor AÇORIANOS MELHOR DIREÇÃO, MELHOR ATOR(Renato Del Campão) e MELHOR CENOGRAFIA(Alexandre Navarro) onde também foi indicado a MELHOR ESPETÁCULO E PRODUÇÃO.
Ministrou várias oficinas dentro do Projeto Usina das Artes e fez oficinas com diversos nomes da cena teatral gaúcha e nacional tendo por último,participado da oficina de Performance OUVIDORIA com o diretor Matteo Bonfitto.

Trabalhou 13 anos na produção do Porto Alegre Em Cena e 7 anos no Festival Palco Giratório do Sesc.

SERVIÇO
ONDE: CIA DE ARTE, Rua dos Andradas 1780, Centro Histórico
QUANDO:Julho, Agosto e Setembro
03/07 à 27/09/2017 segundas e quartas das 19h ás 21:30h
CARGA HORÁRIA:60hs aula
QUANTO:R$200,00 por mês
INSCRIÇÕES:edu.kraemer@gmail.com

CONTATO:
EDUARDO KRAEMER
(51)984121265 (51)30221265
edu.kraemer@gmail.com
RENATO DEL CAMPÃO
(51)996568341
rcampao@bol.com.br

terça-feira, 30 de maio de 2017

Seminários de Psicologia Analítica ESPAÇO ARTE-CIÊNCIA

Enquanto a UTOPIA idealiza o futuro e a DISTOPIA constrói o trágico amanhã, a INDIVIDUAÇÃO é a autoconsciência da realidade, onde as diferenças respeitadas objetivam um bem-estar comum. Seminário coordenado por Flora Bojunga Mattos, aberto a toda a pessoa interessada em discutir a nossa posição na sociedade de hoje.


Quando: 31/05/2017, das 20h às 22h
Onde: ESPAÇO ARTE-CIÊNCIA
Endereço: Rua Miguel Couto, 770 - Menino Deus - Porto Alegre/RS 

 

sexta-feira, 19 de maio de 2017

quântica poética

Ao som das esferas celestes, de estrelas que se debatem e trincam no movimento inconstante constante do nascimento de uma supernova: dança cósmica de ancestrais-novos deuses. Me encho de universo, e por um instante tudo suspende. Trago a tinta das estrelas nas palmas de minhas mãos enquanto me descubro poema. Em meus olhos, o verso de galáxias além sol e dessa própria terra.
Poesia... poesia. Esse coração que se desperta em supernova, que desperta em amanhecer. Esse meu coração que bate em poesia. Te descubro, me redescubro: um poema em constante pulso.
Além de qualquer átomo meu, por toda geometria do meu DNA, em toda minha carne, o sopro que me faz vida é o poema. Energia dimensional que movimenta astros, minha supernova que jamais morre e me faz (r)existir.
Em todos os tempos e em toda atemporalidade, nos meus silêncios, nas estações que ficam entre as estações, toda vez que meus olhos abrem um novo dia, toda vez que minha água interior é maré nos meus olhos. Toda vez que entendo o amor, toda vez que o amor me acende, toda vez que me percebo amor.
Em tudo, em todos, em cada recanto dos multiversos interiores e desse próprio mundo: poesia.
Te descubro, poema em constante pulso, me descubro.

(Michelle C. Buss)

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Um poema da etnia bambara

Ondula, savana branca, de Ruy Duarte de Carvalho, é uma coletânea de textos, publicada em 1989, das mais diversas tradições orais africanas. A obra está dividida em "Versões", "Derivações" e "Reconversões", configurando as várias operações que Duarte realiza a partir do material da oralidade de vários povos africanos (Fulani, Yorubá, Pigmeu, Ngoni, Didinga, Akan, Dinkas, Xhosa, Thonga, Somali, Barg-dâmaras, Mensa, Zulu, Nyaneka, Kwanyama). Com sua sensibilidade poética e transitando pelos domínios da etnografia, Ruy Duarte de Carvalho produz um livro instigante e de uma riqueza cultural e literária enorme.
Uma das partes de Ondula, savana branca, a "Bambara"(etnia Bambara [Bamaba, na sua própria língua, ou algumas vezes, Banmana] é um povo que vive no oeste da África, principalmente no Mali, próximo ao rio Níger), é regida pelo "Ensinamento oral do Koré". As estrofes são organizadas com informações a respeito do processo de iniciação ao conhecimento de preceitos do Koré, aprendido pelos membros do povo Bambara, desde a mais tenra idade, como uma forma da preparação da espiritualização e divinização do homem.
Abaixo, segue o poema, considerado para mim como um dos mais belos que já li:


Ensinamento oral do Koré
A voz dos Karaw
*

PRIMEIRA TIRADA


Savana verde bem fresca
savana verde verdadeiramente aberta
à fome dos rebanhos
exposta aos rebanhos famintos
savana verde
não se apossou a terra ainda
do meu corpo
e eu posso abrir os prados
                                 da palavra.

Deslumbramento, surpresa!
Já existia o que se aprende agora
e o que acontece acontecia já.
Mas como havia de sabê-lo então
quando a torrente me arrastava ainda
e eu via a minha face a renovar-se?

O princípio do princípio da palavra
foi quando o pássaro disse para si mesmo:
eu falo, sua a beleza, o som e o movimento
e a consciência exacta destes dons.

E se eu me engano
que o castigo seja cego para o meu erro
e o esquecimento ressalve o esquecimento
porque eu não passo de um punhal
embainhado
porque eu não sou abóbada celeste
nem sou o filho da abóbada celeste
e nem sequer o espaço do encontro
a que se entregam as asas do crepúsculo.

Eu sou aquele, apenas
que está rendido ao canto que anuncia
o fim da noite
e o despontar da aurora.

Uma atenção sem fé engendra o esquecimento
e o esquecimento é que apadrinha o erro.
Da casa do saber
um pátio apenas sou e no entanto um pátio
pertence já também à construção.

Cada conquista
provém de outra conquista
e a posse da ciência é discernir
como se entrança nelas o saber.
É casa já também
o pátio que precede a construção.

Transformação
transformação.
Fornalha
fornalha do homem.

Dos homens pacientes
eu digo que a paciência
é uma paciência clara.
Eus o espaço do encontro:
toda paciência é uma paciência clara.

Transformação!


SEGUNDA TIRADA


Ondula, ondula
savana branca
até que tudo se confunda em ti.

Oh fragmentadores da noite crepuscular
por detrás dos animais só há obscuridade
e obscuridade só
pela sua frente.
O poderoso hipopótamo
está perdido num bosque sem saída.
Já quando quis entrar
recorreu a uma pequena criatura
cega como ele e como ele perdida.
Como fará o cego para que possa ver?
Será capaz de assegurar ao passo
a graça da cadência original?

A fornalha poupou-nos
preparou-nos
para atravessar as portas do mistério.

Verga-te, oh céu
e entrega-te tu, oh terra
para que eu veja essa clareira branca
o mato abandonado
a mata abandonada
e nada se oculte
tudo esteja lá.

A fornalha poupou-nos e é tempo de dizer
velhos e vãos fragmentadores do céu
que o corpo não findou
e está ressuscitado.

Submetei-vos
asas brancas do crepúsculo
ao lugar do encontro dos espaços
à primeira das palavras
a que remonta à parição do homem
e viajou por todas as clareiras
até desembocar na casa do saber.

Eis a Palavra, é esta
a que não dorme
a que não cessa de aguardar
no coração dos homens.
Conhece-a apenas o urso formigueiro
visionário que escava no mais fundo
e o porco-espinho
que é o mestre protector do conhecimento herdado
e o falcão branco
que é rápido e ladino
e se apercebe de tudo ao mesmo tempo.
Mas foge ao falcão cinzento
que não se fixa e voa distraído.

Aquilo que eu sei
alguém mo legou.
Pai Palavra
Mãe Palavra
Palavra anterior
vem e transforma já o meu futuro.

Repartamos a carga pelas nossas cabeças
oh filhos dos fragmentadores do céu
unamos a perseverança do aprendiz
à perseverança do mestre.
Transformação!

Acalmai-vos
fragmentadores alados do crepúsculo
eu sou a Palavra
a abóbada celeste
o encontro dos espaços.

A noite é escura
vazia não é.


TERCEIRA TIRADA


Como o punho da lança
como a abóbada celeste
como o filho único da altura
acalmai-vos, eis-me aqui
oh sopradores do crepúsculo

Abóbada celeste
filho único da altura
ave surda-muda
labareda acesa que não atinge o osso.

Obscura é a palavra
embainhada até para os velhos mestres
e mesmo o fundador
foi procurar sabê-la mais além.

Há coisas úteis na casa do amigo
e há coisas úteis na do inimigo:
não será pois de recorrer às duas?
Pela paz se alcança a paz
e o que há para além da paz.
Labor imenso!
Transformação!

O que se ensina agora existe desde sempre.

E é a casa já também
o pátio que precede a construção.


QUARTA TIRADA


Savana verde bem fresca
savana verde verdadeiramente aberta
à fome dos rebanhos
exposta aos rebanhos famintos
savana verde:
não se apossou a terra ainda
do meu corpo
e eu posso abrir as portas da palavra.

Ave surda-muda
palavra obscura
                       o que há no alto
                       oh sopradores da noite?

Se interrogardes a velha experimentada
saberá elucidar-vos que se trata
da fornalha
do calor
dificuldade extrema.

Mas as verdes raparigas sabem bem
que o fogo não é forte:
resiste mas convida
e se abandona enfim
a quem persiste.

O que se ensina agora
existe desde sempre
e há coisas úteis na casa do amigo
e coisas úteis na do inimigo.

Obscura é a palavra
embainhada até para os velhos mestres
e mesmo o fundador
foi procurar sabê-la além de si.
O que seria enfim da reflexão
se a não iluminasse a luz do espírito?

O que sabeis das tranças do saber
velhos e vãos fragmentadores da noite?

O que sabeis da luz da reflexão?

     — QUE HABITA NA PENUMBRA DO MISTÉRIO!




Bibliografia consultada:

CARVALHO, Ruy Duarte de. Ondula, savana branca. Luanda: UEA, 1989.
FONSECA, Maria Nazareth Soares.  Percursos da memória em textos das literaturas africanas de língua portuguesa. Niterói: Gragoatá, n.19. p. 45-63, 2. sem. 2005.


Texto de Michelle C. Buss
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Evoé
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sexta-feira, 28 de abril de 2017

SOCIEDADE DA IN FORMAÇÃO OU O QUE AS SEREIAS CANTARAM TAMBÉM A ULISSES


 Choque elétrico no chuveiro
fio mal conectado
nesse aquário morno
soletrado


C-O-T-I-D-I-A-N-O

de ondas indecentes e confluentes
azulejos portugueses
e o resto de palha da cubata.

Aqui é o Brasil
mas podia ser qualquer lugar do mundo
em qualquer hora
só neste momento.

Teia invisível
do quarto mundo
do quarto nível
envolvendo tudo-nada
nesse quarto
em que o homem deita na mulher que não quer.

Atira a palavra.
atira
do revólver da tua boca
e acerta o coração.
Acerta o coração da moça, do pai, do avô
uma vez que o gatilho dispara não tem volta

BUM

Vai-se mais uma bala
um tiroteio de palavras naquele outro quarto.

Além da janela
vai lá o moleque
canta qualquer coisa que escutou na rua
para ter música na língua
já que na alma tem pouca.
Canta para enganar o estômago:
passarinhos da fome
debatem suas penas afiadas
nos músculos de dentro.
Torce e arranha.
Mas assim mesmo
a língua salivada continua cantando.

Passa por ali,
perto do moleque,
tá vendo ali?
Não, não aquele Ford...
Naquela Mitsubishi
no banco de trás
o poeta calado pela indiferença
reprimindo nos dedos o poema.

É difícil prender poemas
mas às vezes se consegue
quando o medo do verbo
é maior que o amor
quando medo de ser poeta
é maior que ser.

Cala o poema
Poema calado.

No banco da frente
ela que ama mais o carro que
o motorista
que não ama ela
mas o jovem ao lado do poeta
que nem citei.
O motorista e ela
um casal descasado
como qualquer outro
e tantos iguais a outros: casados.

Do outro lado da rua,
quase na esquina
o velho
carregando o dia nas costas
e nas mãos o final de mês.
Passando por ele
o garoto fumando maconha,
camiseta hippie chique
com uma frase marxista.
Acha que isso é revolução –
Revoluciona ação.

E nesse aquário de água parada
cheia de resíduos
eu nem falei ainda
do vendeiro, do americano,
da diarista, das des-africanidades,
do chinês, dos boêmios,
do banco, banqueiro, seus bancários

de diplomas comprados
dos intelectu-ais: conforme – citação indireta
alguém, talvez Freud ou Foucault
do religioso sem religião,
da religião sem religiosos,
de médicos faz de conta que são médicos,
das falsas famílias pregando famílias,
das depressões,
depredações,
negações.
ações corruptas
rupturas de personalidade.
Noites em que lua é pregada no céu
porque nem a lua quer ser mais lua.

Bebe um pouco de cachaça
para amolecer essa língua.
entortar um pouco essa palavra...

Nem precisa falar.
Tá tudo ali!
Não na próxima linha,
não nesse poema.
Tá ali fora
nesse aquário

C-O-T-I-D-I-A-N-O

Hashtag #sociedade
precisa mesmo um
pouco de eletricidade
na barbatana
escorrendo pela água do chuveiro

Peixe que
Anda
Nada.

(Michelle C. Buss)


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Evoé
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terça-feira, 10 de janeiro de 2017

sou pulmonar...

sou pulmonar...
tem um quê de estrela em meu peito
 um tanto de água na minha respiração
 e o som de marimba que bate no cardíaco.

sou pulmonar...
tenho um pouco de vento
sopro de vida que tinge o espaço de flores
e carrega no corpo uma canção.

sou pulmonar...
e meu corpo é um instrumento
de pele percutida.

Ar e Som

em movimento
de respiração


(Michelle C. Buss, poema do livro "Sal, topázio e mercúrio")




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Evoé
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