sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Olhos Parados - Manoel de Barros

a Mário Calábria


Ah, ouvir mazurcas de Chopin num velho bar, domingo
de manhã!
Depois sair pelas ruas, entrar pelos jardins e falar
com as crianças.
Olhar as flores, ver os bondes passarem cheios de
gente,
E encostado no rosto das casas, sorrir...

Saber que o céu está lá em cima.
Saber que os olhos estão perfeitos e que as mãos estão
perfeitas.
Saber que os ouvidos estão perfeitos. Passar pela
Igreja.
Ver as pessoas rindo. Ver os namorados cheios de
ilusões.

Sair andando à-toa entre as plantas e os animais.
Ver as árvores verdes do jardim. Lembrar das horas
mais apagadas.
Por toda a parte sentir o segredo das coisas vivas.
Entrar por caminhos ignorados, sair por caminhos
ignorados.

Ver gente diferente de nós nas janelas das casas, nas
calçadas, nas quitandas.
Ver gente conversando na esquina, falando de coisas
ruidosas.
Ver gente discutindo comércio, futebol e contando
anedotas.
Ver homens esquecidos da vida, enchendo as praças,
enchendo as travessas.

Olhar, reparar tudo em volta, sem a menor intenção
de poesia.
Girar os braços, respirar o ar fresco, lembrar dos
parentes.
Lembrar da casa da gente, das irmãs, dos irmãos e dos
pais da gente.
Lembrar que eles estão longe e ter saudades deles...

Lembrar da cidade de onde se nasceu, com inocência, e
rir sozinho.
Rir de coisas passadas. Ter saudades de pureza.
Lembrar de músicas, de bailes, de namoradas que
a gente já teve.
Lembrar de lugares que a gente já andou e de coisas
que a gente já viu

Lembrar de viagens que a gente já fez e de amigos que
ficaram longe.
Lembrar dos amigos que estão próximos e das
conversas com eles.
Saber que a gente tem amigos de fato!
Tirar uma folha de árvore, ir mastigando, sentir
os ventos pelo rosto...

Sentir o sol. Gostar de ver as coisas todas.
Gostar de estar ali caminhando. Gostar de estar assim
esquecido.
Gostar desse momento. Gostar dessa emoção tão cheia
de riquezas íntimas.
Pensar nos livros que a gente já leu, nas alegrias dos
livros lidos.

Pensar nas horas vagas, nas horas passadas lendo as
poesias de Anto.
Lembrar dos poetas e imaginar a vida deles muito
triste.
Imaginar a cara deles como de anjos. Pensar em
Rimbaud,
Na sua fuga, na sua adolescência, nos seus cabelos cor
de ouro.

Não ter idéia de voltar para casa. Lembrar que a
gente, afinal de contas,
Está vivendo muito bem e é uma criatura até feliz.
Ficar admirado.
Descobrir que não nos falta nada. Dar um suspiro bom
de alívio,
olhar com ternura a criação e ver-se pago de tudo.

Descobrir que, afinal de contas, não se possui
nenhuma queixa
E que se está sem nenhuma tristeza para dizer no
momento.
Lembrar que não sente fome e que os olhos estão
perfeitos.
Para falar a verdade, sentir-se quite com a vida.

Lembrar dos amigos. Recordar um por um.
Acompanhá-los na vida.
Como estão longe, meu Deus! Um aqui. Outro lá, Tão
distantes...
Que fez deste o destino? E daquele?
Quase vai se esquecendo do rosto de um... Tanto
tempo!

Ter vontade de escrever para todos os amigos.
Ter vontade de lhes contar a vida até o momento
presente.
Pensar em encontrá-los de novo. Pensar em reuní-los
em torno de uma mesa,
Uma mesa qualquer, em um lugar que a gente ainda não
escolheu.

Conversar com todos eles. Rir, cantar, recordar
os dias idos.
Dar uma olhadela na infância de cada um. Aquele
era magro, Venício...
Aquele outro era gordo, Abelardo...Aquele outro
era triste.
Ai, não esquecer jamais este último, porque era
um menino triste.

Como andarão agora? Naturalmente, mais velhos,
Talvez eu não conhecerei alguns. Naturalmente, mais
senhores de si.
Imaginar todos eles com ternura. Pensar nos mais
fracos,
Naqueles, naturalmente, para quem o mundo deve ter
sido menos bom.

Pensar que eles já vêm. Abrir os braços.
Procurar descobrir, no mundo que os envolve,
Alguma voz que tenha acento parecido,
Algum andar que lembre o andar longínquo
de algum deles...

Ah como é bom a gente ter infância!
Como é bom a gente ter nascido numa pequena
cidade banhada por um rio.
Como é bom a gente ter jogado futebol no Porto de
dona Emília, no Largo da matriz,
E se lembrar disso agora que já tantos anos são
passados.
Como é bom a gente lembrar de tudo isso. Lembrar
dos jogos à beira do rio,
Das lavadeiras, dos pescadores e dos meninos do Porto
Como é bom a gente ter tido infância para poder
lembrar-se dela.
E trazer uma saudade muito esquisita escondida no
coração.

Como é bom a gente ter deixado a pequena terra em
que nasceu
E ter fugido para uma cidade maior, para conhecer
outras vidas.
Com é bom chegar a este ponto de olhar em torno
E se sentir maior e mais orgulhoso porque já conhece
outras vidas...

Como é bom se lembrar da viagem, dos primeiros dias
na cidade,
Da primeira vez que olhou o mar, da impressão de
atordoamento.
Como é bom olhar para aquelas bandas e depois
comparar.
Ver que está tão diferente, e que já sabe tantas
novidades...
Como é bom ter vindo de tão longe, estar agora
caminhando
Pensando e respirando no meio de pessoas desconhecidas
Como é bom achar o mundo esquisito por isso,
muito esquisito mesmo
E depois sorrir levemente para ele com os seus
mistérios...

Que coisa maravilhosa, exclamar. Que mundo
maravilhoso, exclamar.
Como tudo é tão belo e tão cheio de encantos!
Olhar para todos os lados, olhar para as coisas mais
pequenas,
E descobrir em todas uma razão de beleza.

Agradecer a Deus, que a gente ainda não sabe
amar direito,
A harmonia que a gente sente, vê e ouve,
A beleza que a gente vê saindo das rosas; a dor
saindo das feridas.
Agradecer tanta coisa que a gente não pode acreditar
que esteja acontecendo.
Lembrar de certas passagens. Fechar os olhos para ver
no tempo.
Sentir a claridade do sol, espalmar os dedos, cofiar
os bigodes,
Lembrar que tinha saído de casa sem destino, que
passara num bar, que ouvira uma mazurca,
E agora estava ali, muito perdidamente lembrando
coisas bobas de sua pequena vida.

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