segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O resgate da geleia geral na idade da pedrada

Imagem da capa do álbum Tropicalia ou Panis et Circensis
A década de 1960 superou o momento de luto vivido nas décadas anteriores (1940-1950), tanto nos movimentos artísticos, como cinema e teatro, quanto no exercício cancional. Os anos 1940 e 1950 foram calcados por um sentimento generalizado de pesar, provocado por uma série de acontecimentos como a passagem pela 2ª Grande Guerra, findada em 1945, e o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 1954.
No Brasil, a dor era refletida nas artes e, sobretudo, na música. Os intérpretes valiam-se de tons passionais e durações melódicas (TATIT, 2002) traduzindo na voz certo sofrimento e clamor. Para o teórico Luiz Tatit, o cantor, além de representar um corpo vivo, também é um corpo imortalizado em sua extensão timbrística, uma vez que “[...] ultrapassa a realidade opressora do dia-a-dia, proporcionando viagens intermitentes aos seus ouvintes”. De acordo com o autor, o cancionista substitui as tensões do cotidiano e as substitui por tensões melódicas, em que só se inscrevem conteúdos afetivos ou estímulos somáticos. Uma canção que se aproveita disso nitidamente é Conceição (1946), de Dunga e Jair Amorim, interpretada por Cauby Peixoto. Este cantor maximiza a dramatização da letra, a qual conta a história de uma personagem que desce do morro para a cidade e prova alguns amargores. Conceição, cuja letra é construída por antagonismos, é entoada com grandes intervalos e alongamentos de vogais.
No início dos anos 1950, canções como Conceição predominavam no rádio, mídia bastante difundida entre os arautos do Tropicalismo antes da explosão da Bossa nova – nessa mesma década –, gênero musical que revigorou e atualizou a tradição do samba de 1930, produzindo um tipo de canção pronta para ser exportada. Além disso, a Bossa Nova trouxe uma melodia cadenciada, capaz de ressuscitar os espíritos que até então viviam sombrios. Outro ritmo que surge na linha da modernização da música brasileira para reavivar as referências internacionais é o rock. Os musicistas brasileiros, em um gesto antropofágico, criam o rock nacional incorporando o “iê-iê-iê”, ritmo consagrado na década de 60 pela Jovem Guarda. O Tropicalismo, que emerge por volta de 1967, por sua vez, está no meio disso tudo: absorve os ritmos que fazem parte de uma linha passional – como boleros, sambas-canção e ritmos latinos –, a Bossa Nova, o rock nacional – cujo instrumento mais simbólico é a guitarra elétrica – e a música nordestina, incorporada principalmente através do Baião.
Desde os Festivais ocorridos em 1967, havia cantores protestando, através de suas músicas, contra a ditadura militar que se instaurou no país em 1964. Com a aprovação do AI 5, em 1968, que, entre outras coisas, concedia poderes extraordinários ao presidente da república, permitia censura prévia e dispensava habeas corpus – acabando com os direitos individuais –, fez com que a tensão da época aumentasse. O que acontecia na política brasileira era refletido em todos os outros âmbitos. Com a implantação de mais esse decreto, houve um rompimento com o engajamento e a reificação que vinham sendo construídas na música brasileira. E o tropicalismo foi em busca de caminhos alternativos e incendiários: não esteve nem à esquerda nem à direita, permaneceu nos entremeios. Segundo as ideologias do movimento, todo engajamento é falso; portanto, é inútil tomar alguma posição definitiva.


Caetano Veloso cantando Alegria, Alegria no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967. 

O cantor e compositor Caetano Veloso é considerado o mentor do Tropicalismo, visto que sua atitude irreverente e a capacidade de estar sempre atento às possibilidades da canção brasileira, seja a moderna ou suas antecessoras, fizeram-no tomar a frente do movimento. Veloso, ao acompanhar trabalhos digressivos e questionadores, como o do cineasta baiano Gláuber Rocha e a peça teatral O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, percebeu que era possível e, sobremodo, necessário, acoplar as mudanças que aconteciam nas artes à música brasileira. A consciência provinciana do compositor, que vivia na cidade de Santo Amaro, no interior da Bahia; a necessidade de se transmutar para a metrópole, escolhendo morar em São Paulo; o acesso que ele teve à filosofia, principalmente ao existencialismo de Sartre (VELOSO, 1997) e à literatura, influenciado principalmente por Clarice Lispector e Guimarães Rosa, não devem ser desprezadas ao se pensar na idealização do projeto tropicalista. Além disso, a figura modernizadora de João Gilberto era cultuada por Veloso desde que o ouviu pela primeira vez. O fato de João Gilberto também ser baiano, de Juazeiro, e ter sido responsável por uma revolução na canção brasileira até então dominada pelos cariocas cosmopolitas Tom Jobim e Vinicius de Moraes, deu a Caetano ainda mais certeza de que era preciso preparar uma invasão.
Roberto Schwarz afirma, no seu livro Cultura e Política (1964-1969), que o Tropicalismo elaborou sua dicção sobrepondo avanço e atraso, o que resulta em uma forma de sensível poder alegórico. Ora, o princípio tropicalista é a interdependência entre avanço – o que se dá através de sua dicção – e atraso – o que se dá nos resgates de ritmos como o baião e de canções como Coração Materno, de Vicente Celestino). O Tropicalismo é, antes de tudo, a incorporação do que é desprezado. Daí a importância da visão provinciana de Veloso e de seus companheiros baianos que se mudaram para São Paulo – Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia (que formavam, juntamente com Caetano, o grupo Doces Bárbaros) e Tom Zé –, única capaz de sentir necessidade de unir o antigo e o novo, traduzindo-os em algo transgressor que reafirme suas identidades mesmo em um terreno arredio. A concretização dessa atitude fez com que eles dirigissem a cultura pop brasileira nas décadas seguintes.
Conforme Schwarz, “no conjunto de seus feitos secundários, o golpe (1964) apresentou-se como uma gigantesca volta do que a modernização havia relegado”. Os tropicalistas desconstroem tudo na medida em que questionam instituições como a família, a igreja, o trabalho, a pátria. No entanto, as críticas produzidas pelos tropicalistas são permeadas por alegorias que não deixam transparecer, de imediato, sobre o que eles estão falando. A sexta faixa do disco Tropicália ou panis et circencis (1968), Geleia geral, composta pelo poeta e jornalista Torquato Neto e interpretada por Gilberto Gil, geleia geral possui uma letra que, em princípio pode parecer confusa pela profusão de temas de que trata. Porém, a letra de manifesto da canção encerra os principais elementos do Tropicalismo.

Santo barroco baiano
Super poder de paisano
[...]
Três destaques da Portela
Carne seca na janela
Alguém que chora por mim
[...]
Plurialva, contente e brejeira
Miss linda Brasil diz: "Bom Dia"
[...]
Pego um jato, viajo, arrebento
Com o roteiro do sexto sentido

A valorização da criação popular brasileira e dos ícones normalmente desprezados pela cultura, englobando desde o santo barroco aos concursos de Miss e do avião a jato à carne seca na janela, traduz uma tentativa de incluir a população brasileira em um mundo visível que é seu, e não importado. Nos anos 1950, com o Planos de Metas do presidente Jucelino Kubitschek e sua proposta de “crescer 50 anos em 5”, o Brasil começou a produzir como os centros (Estados Unidos e países europeus), mantendo-se na “modernidade periférica” do subdesenvolvimento. Desse modo, a cultura americana começou a ser importada e influenciar veementemente o comportamento dos brasileiros. A canção de Torquato tenta negar a cultura alheia e ressaltar a cultura nacional – sem ser ufanista –, admitindo a miscigenação que aqui vigora e a qual devemos “comer”.
A frase “a alegria é a prova dos nove” é uma nítida referência a Oswald de Andrade, o mesmo que faz o Manifesto Antropofágico, cujo sentido está presente no fazer cancional que se estende ao longo do Tropicalismo. Além disso, o título da canção ganha razão por meio da mistura de ritmos, por exemplo, como explícito no refrão:

Ê, bumba-iê-iê-boi, ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-iê-iê-iê, é a mesma dança, meu boi

Os dois versos são, contudo, significativos para compreender o que seria o Tropicalismo: o que compara o iê-iê-iê e o bumba-meu-boi, mostrando um caráter ao mesmo tempo globalizante. Mais do que mostrar os dois ritmos, a letra mostra um ritmo costurado no outro, com se ambos tivessem devorado-se.

Minha terra é onde o Sol é mais limpo
Em Mangueira é onde o Samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro

Em busca de construir uma identidade nacional que também leve em conta o interior e as minorias, como os índios, o verso em que Gil exclama ao entoar: “Pindorama, país do futuro!”, traz uma palavra que, em língua tupi se escreve pindó-rama ou pindó-retama. Pindorama significa: "terra/lugar/região das palmeiras", é uma designação para o local mítico dos povos tupi-guaranis, que seria uma terra livre dos males. Justamente o que os dois primeiros versos da estrofe ressaltam: uma terra onde o sol é mais limpo, enfatizando a natureza exuberante, e o samba é mais puro, destacando a alegria brasileira e o carnaval.

E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil

Todavia, mantendo a tensão e o impasse de ideologias do movimento, os tropicalistas ironizam o amor pelo Brasil pregado pelos governantes durante a ditadura, com frases como: “Ame-o ou deixe-o”, tentando implantar o nacionalismo. À revelia, a letra da canção critica quem não luta (dança) contra o que está acontecendo no período – tanto a juventude conformada quanto as famílias conservadoras “na sala de jantar”, que só se preocupam em nascer e morrer, alienação e egoísmo típicos da época –, e “assiste a tudo e se cala”. A letra apresenta sinuosidade, visto que estão presentes tensões entre o futuro e instituições de outrora. Ademais, “relíquias” ali tem o sentido oposto, ou seja, representa, irônica e alegoricamente, as mazelas que estão ocorrendo no “meio da sala” – torturas, desaparecimentos, mortes – e só não vê quem não quer, pois o Jornal do Brasil anuncia a geleia geral brasileira.

Faz do morro, pilão de concreto
Tropicália, bananas ao vento

Aliando integração e tentativa de formar uma identidade brasileira, o primeiro verso da estrofe faz uma crítica social ao descaso com os moradores do morro que, quando descem para o centro, não têm acesso a outro espaço do que o trabalho braçal ou a mendicância. Entretanto, ao mesmo tempo que defende causas sociais, o Tropicalismo também defende a modernidade, em que é mais ou menos "cada um por si”, ou seja, Caetano e Gil, por exemplo, vieram para o Rio e estavam preocupados em descobrir as possibilidades de suas carreiras e vender discos, o que exigiu deles um posicionamento de direita também, uma vez que, para angariar visibilidade e existir, era preciso aproveitar as mídias vigentes, como o rádio e a TV, meios que não eram oposição ao governo. Por esse posicionamento contra tudo e, ao mesmo tempo, a favor de tudo, por essa necessidade de se auto-afirmar para negar, por essa repulsa a definições estéticas e protestos, o Tropicalismo sempre quis um lugar distinto, e sem amarras, onde ele pudesse iniciar e terminar quando bem entendessem seus membros. Assim, sem compromisso com o resto, a não ser com o próprio movimento, enquanto ele existia, o último verso traduz a sua rebeldia incontornável em um gesto exibido sem pudor: “Tropicália, bananas ao vento”.

No Canecão, na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne-seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade jardim

Geleia geral é transgressora não só na letra, mas também na harmonia que, além de misturar o baião e o bumba-meu


-boi, tocados por Gil no violão – e não no acordeom, como é típico do primeiro –, é quebrado no instante em que o intérprete aproxima-se muito mais da fala direta ao interlocutor do que da entoação, durante a estrofe exibida acima. Outra quebra acontece no fim da música, porém em vez de o canto desacelerar para aproximar-se do diálogo, a frase: “É a mesma dança, meu boi” é entoada duas vezes de maneira mais acelerada do que o resto da música.

Amanda Gomes


Referências bibliográficas

TATIT, Luiz. O cancionista. 2ª ed. Editora da Universidade de São Paulo: São Paulo, 2002.
Veloso, Caetano. Verdade Tropical. Companhia das Letras: São Paulo, 1997.



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Evoé
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