sexta-feira, 27 de novembro de 2015

As flores de plástico não morrem


Foto: Amanda Gomes

O vinil é um meio de as pessoas se presentearem com músicas.
Aquele pedaço de papel cartão que mede 30cm x 30cm carrega artes gráficas desenvolvidas cuidadosamente, desde a capa até o encarte, os quais são finalizados através de um processo quase totalmente científico, não fosse a poesia que está intrínseca nas imagens impressas. O disco é como uma flor embrulhada, cujo papel estampa fotos, cores e nomes, mas também pode servir de base para muitas declarações (sejam elas de amor ou não).
No terceiro andar da Galeria Chaves, um dos prédios veteranos da Rua dos Andradas, situada no centro histórico de Porto Alegre, existe um espaço dedicado a esses objetos, cujo valor está presente não só em sua materialidade, mas também no conteúdo: as canções que pairam na imensidão do tempo. Para os amantes dos discos, tanto clássicos como obsoletos – que podem se tornar descoberta fabulosas –, visitar a Tamba Discos é como passear pela própria infância e juventude, ou mesmo desvendar épocas que não foram vividas. Na pequena sala, há milhares de álbuns, pendurados nas paredes e dispostos nas prateleiras, que já emocionaram muitas pessoas e estão prestes a emocionar o próximo comprador ou o seu destinatário. 

Foto: Amanda Gomes

A Tamba Discos possui diversos álbuns que marcaram décadas e gerações. Tristes ou alegres, algumas músicas têm o poder de acessar memórias e trazê-las à tona como um tufão, varrendo todos os pensamentos que encontram pela frente e ativando apenas uma cena, um gesto, um olhar, um sorriso, um sentimento, uma vontade. A música transgride as regras do tempo. Através de apenas uma nota, pode-se reconhecer o que foi a trilha sonora de uma história. Se o arranjo inicial pode remeter imediatamente ao todo que compõe a melodia responsável por embalar uma fase da vida, o refrão é capaz de deixar o coração em frangalhos e os olhos mareados, acelerando a pulsação e fazendo-nos mergulhar nas lembranças. 

“Desde criança eu tenho familiaridade com a música, os discos sempre estiveram à minha volta através da coleção que era do meu pai.” 

Michel Munhoz, de 37 anos, é bem mais do que o atendente da Tamba Discos que vende LPs e CDs novos e, em sua maior parte, usados. Ele é amante e profundo entendedor de música. Apaixonado por rock in roll, ele já fez parte de bandas do gênero e segue desenvolvendo trabalhos musicais em estúdio para diversos fins. Por isso, suas vidas pessoal e profissional são atreladas à música. “A música, além de fazer parte do meu trabalho aqui na loja, está presente nas atividades que desenvolvo fora daqui e que também geram parte da fonte do meu sustento”, destaca Munhoz. 

“Antes de trabalhar na Tamba Discos, eu já frequentava esse lugar há mais de 20 anos.” 

Há cinco anos, o musicista conduz o empreendimento que muito frequentou na juventude. Ele relata que, quando o dono da Tamba Discos estava precisando de alguém que conhecesse a loja e as sutilezas que ela possui para nela trabalhar, logo surgiu o interesse de Munhoz em ocupar vaga sugerida. “Isso era para ter durado cerca de seis meses, só para quebrar um galho, mas ainda estou aqui”, ele vibra. Enquanto seu colega de trabalho e proprietário do comércio vai em busca de vinis que possam ser revendidos por eles, Munhoz se preocupa em atender o público cativo do lugar e indicar os álbuns que se aproximam do gosto musical de cada um. “A faixa etária que costuma procurar nossos produtos vai dos 20 aos 80 anos, nosso público é muito variado”. Munhoz conta que, assim como a idade dos clientes, os gêneros musicais procurados por eles são abrangentes. Embora o forte da loja sejam os álbuns de rock in roll e pop, os discos de música clássica, Música Popular Brasileira (MPB), jazz e orquestras também são requisitados. 

Foto: Amanda Gomes
 
“O disco que mais me pedem é o Tropicália ou Panis et Circenses, mas faz tempo que ele não passa por aqui.” 

Gravado em estúdio, com composições e interpretações de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé; dos poetas José Carlos Capinam e Torquato Neto e do maestro Rogério Duprat, o disco Tropicália ou Panis et Circenses foi lançado em julho de 1968. Símbolo máximo do que significou o movimento tropicalista, idealizado musicalmente por Caetano e Gil, a obra sintetiza as angústias e ambições da geração que viveu o final dos anos 1960 e início da década de 1970. Munhoz diz que relíquias como essa são raras de se ver no mercado e, quando são encontradas, o preço é bastante alto (podendo ultrapassar R$ 100).

 “O disco que eu considero um verdadeiro patuá da loja é do Daminhão Experiência.”

O bilhete junto ao disco demonstra a admiração
do pessoal da loja por Daminhão, que é considerado por eles
o "pai" da música experimental.
Foto: Amanda Gomes

Munhoz relembra que várias pessoas já quiseram comprar o álbum, mas ele sempre fez questão de ressaltar que o disco não estava à venda. “Os conterrâneos do Daminhão Experiência (nascido no Rio de Janeiro), ou quem teve oportunidade de conhecer o trabalho dele, se virem o disco vão querer leva-lo”, decreta o musicista. “Um cliente carioca, que chegou a conhecer o Daminhão, veio aqui na Tamba e contou sobre a história do artista, super interessado em comprar o LP, mas eu não vendi não”, ele ressalta. De acordo com Munhoz, o próprio Daminhão teria gravado seu LP de modo artesanal em sua casa. “Se tu escutares esse disco, verás que ele tem muitas músicas experimentais”, alerta o atendente. Segundo ele, o mais curioso sobre Daminhão, que ainda é vivo, é que o artista começou a produzir seus próprios discos nos anos 1970, após se aposentar da Aeronáutica, e a tocar nas ruas de Botafogo. “Esse cara é uma lenda urbana do Rio de Janeiro”, exclama o musicista. 

“Em primeiro plano, o que é mais especial no vinil é a sua sonoridade.”

Para Munhoz, a sonoridade do vinil é única. “O som do LP é analógico, não é como um compact disc, cuja sonoridade é totalmente esterilizada e a reprodução parte de uma leitura binária. O vinil não, experimenta escutar a intensidade dos graves, a musculatura do som, a fricção do acetato da matéria vinílica”, ele pontua. O musicista fala ainda sobre a maneira adequada de se apreciar um vinil: “Como a agulha faz a reprodução do som pelo contato com o LP, através do sistema analógico, ela também capta sons externos, por isso o ambiente pode ajudar ou atrapalhar a escuta do ouvinte”. O método de gravação da voz e dos instrumentos das canções no plástico do disco é um processo físico. Os sons ficam guardados nas ranhuras pelas quais passeia a agulha. “O caminho que a agulha percorre não é linear, ela oscila, muda de nível, e o próprio vinil balança à medida que ele gira e faz a música tocar”, reflete Munhoz ao descrever um objeto atemporal. 

“Ler um encarte é como folhear um livro.” 

Conforme Munhoz, é isso que prende a atenção das pessoas e faz com que elas sintam necessidade de pegar o vinil na mão, examinar os detalhes das imagens, folhear o material, dar uma olhada na ficha técnica. É como ler um livro: ao manusear o disco a gente imagina as coisas, viaja ouvindo o álbum e, ao mesmo tempo, tem o contato com ele”. Ele conta que alguns discos chegam na loja em estado deplorável. “Nós fazemos um trabalho criterioso para receber LPs de boa qualidade. Não adianta o disco ser raro e seu estado de conservação estar péssimo”, ele pondera. 

Foto: Amanda Gomes

“Eu lembro de um disco do Zé Ramalho, que tinha uma dedicatória enorme dentro, com assinatura e data de 1978, mesmo ano de lançamento do LP.” 

Acompanhando o universo das trocas que uma loja de artigos usados promove há bastante tempo, Munhoz relembra algumas histórias curiosas de remetentes e destinatários que são eternizadas nas capas e nos encartes dos discos. “Quando fiz a leitura do texto, notei que a pessoa estava com o sentimento à flor da pele para dar aquele disco de presente, mas não percebi se ela queria desfazer o relacionamento ou reatar, porque o sentido das frases era dúbio”, narra ele. O musicista diz que já vendeu esse LP e que, quando o cliente se interessou pelo material, ele fez questão de mostrar a dedicatória, temeroso de que isso impedisse o negócio. “Daí o cara me disse: ‘Nossa! Eu vou levar esse disco, eu preciso levar esse disco’, e eu pensei: Poxa, que legal, ele leu e gostou”. Para o músico, a graça das dedicatórias é que elas são encontradas de surpresa. “Eu não separo os discos que têm dedicatória dos que não têm, e cada vez que a gente se depara com uma, a novidade é inevitável”.

 “O disco é a passagem do tempo.” 

Quando se está gravando e produzindo, desenvolve-se um trabalho de registro. De acordo com Munhoz, gravar um álbum é como fotografar: “O que é prensado e gravado no disco, vai estar ali eternizado”. Segundo ele, um LP possui uma durabilidade muito grande. O musicista afirma que as gravações de um CD, por exemplo, podem sumir em um período muito mais curto do que as de um disco de vinil. “O vinil tem essa atemporalidade”, reitera ele. Conforme Munhoz, ao fazer uma canção, o compositor pode tratar de um tema que deve ficar datado, como a ditadura militar no Brasil, ocorrida na década de 1960, por exemplo. “Tem vinis que possivelmente servem como objetos de pesquisa de determinada época, funcionando como um arquivo da cultura”, acrescenta ele. Quando pergunto sobre a música que traz boas lembranças aos próprios ouvidos do musicista, ele diz que essa pergunta, feita dentro de uma loja de discos, é difícil de ser respondida. Concordo com ele, mas insisto que certamente existe uma letra que marcou uma fase de sua vida. Então, Munhoz posiciona uma das mãos no queixo e começa a olhar para a parede repleta de capas, até que encontra o álbum Ocean Rain, da banda inglesa Echo and the Bunnymen, de 1984. 

Michel Munhoz com um dos seus discos favoritos.
Foto: Amanda Gomes


“Neste disco tem uma música que eu gosto muito e me lembra esta mesma loja há uns 20 anos, quando eu comecei a trabalhar nela e este disco estava exposto. Na época eu o comprei e ainda ouço.” 

Sete Mares (Seven Seas) 
Echo And The Bunnymen 

Apunhale um coração arrependido
Com o seu dedo favorito
Pinte o mundo inteiro de azul
E pare as suas lágrimas de remorso
Ouça o canto dos trogloditas
Boas notícias eles estão trazendo

Sete mares
Nadando-os tão bem
Contente de ver
A minha face entre eles
Beijando o casco da tartaruga

Um desejo
Por uma nova sensação
Pertencimento
Ou apenas ajoelhar-se eternamente
Onde está o sentido no roubo
Sem a graça de ser ele

Sete mares
Nadando-os tão bem
Contente de ver
A minha cara entre eles
Beijando o casco da tartaruga

Queimando minhas pontes
E destruindo meus espelhos
Voltando para ver se você é covarde
Queimando as bruxas com mãe religiosa
Você acenderá o fósforo e me banhará
Em jogos aquáticos
Lavando as rochas abaixo
Ensinado e amansado
A tempo com fluxo de lágrima

Sete mares
Nadando-os tão bem
Contente de ver
A minha cara entre eles
Beijando o casco da tartaruga

Sete mares
Nadando-os tão bem
Contente de ver
A minha cara entre eles
Beijando a tartaruga

Sete mares
Nadando-os tão bem
Contente de ver
A minha cara entre eles
Beijando o casco da tartaruga


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Evoé
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