quinta-feira, 27 de março de 2014

RITUAL

Ah! Chacais e serpentes do deserto. Que envenenam minha carne com seus dentes enquanto rasgam minha pele. Fome ferina, cheia de mácula e desejo por sangue. Essa noite, sou seu melhor banquete.
Seres noturnos, criaturas da escuridão. No dourado brilho de vossas íris esconde-se a ânsia de sugar cada fragmento que personifica esse meu débil ser.
Aqui estou para vós. Livre de qualquer amarra, vazio de qualquer sentimento, seco de qualquer sentido. Apenas tenho um cigarro na mão... Nem minha alma trouxe comigo... Abandonei-a há muitas léguas daqui, longe o suficiente para não assistir o ardil dessa cena, longe o suficiente para não derramar lágrimas de compaixão. Compaixão que outrora pude até sentir por mim. Mas não hoje!... Hoje, nessa noite onde impera o luar argento eu sou apenas esse traste. Apenas esse corpo impotente, esse ser pecador.
Espectros do breu! Já posso sentir as vossas respirações cada vez mais perto de mim... muito mais perto.
Posto-me nessa pedra com o olhar perdido aos ventos que cospem areia e farfalham folhas enquanto trago meu cigarro. Vós me perguntais a razão de minha tranqüilidade frente a essa cena trágica? Repondo com uma indagação: existe escolha?!
Depois de tantos dedos que me foram apontados, depois de tantas palavras que foram jogadas, depois de tantas e tantas vezes que minhas asas falharam frente a imensidão dos céus. Depois de tanto usar máscaras e vestir personagens para agradar outrem, depois de dançar o compasso das canções sórdidas de homens mesquinhos e mulheres infames. Depois apenas sobreviver nessa selva infecta chamada sociedade. Depois de não haver mais mentiras para contar a mim mesmo e arfar os lábios em tentativas inúteis de sorrir. Depois de quase não mais conseguir conter a pressão dos fluídos amorfos de sentimentos negativos. Depois de me ver completamente só em meio a uma legião de homens e cansar de engolir poeira, de esmigalhar sonhos e alimentar esperanças cínicas.
Eu aqui abandono tudo que já fui.
Abandono a mim mesmo nesse deserto do sem fim... nessa dimensão paralela criada pelo meu inconsciente. Abandono-me aqui e abro as represas de mágoa e de revoltas. E pela primeira vez eu as deixo correr soltas...
Mas não apenas isso! Entrego a vós criaturas da noite esse meu corpo, essa minha personificação do traste em que me tornei... Dilacerem-no, peço-vos, de tal forma que eu jamais o torne a ver. Permitam apenas que a única parte sã que de mim sobrou, minha alma, ainda sobreviva além daqui. Permita que um dia, após todos esses tormentos passados, minha pobre alma reencontre um novo eu. Um eu mais luminoso, mais verdadeiro...
Não, não gargalhem da minha desgraça almas noturnas! Bem sei que muito fui avisado... Quantos alertas foram-me dado? Infindos... mas isso não bastou. Não bastou. Foi preciso ainda mais um pouco de arrogância, mais um pouco de ganância. Foi preciso alimentar mais desgraças... todas as já vividas, ainda não haviam preenchido meu ser. Foi preciso que a única pessoa que realmente me amou me virasse a cara, não mais me reconhecesse... Foi preciso ver de seus olhos verterem água. Foi preciso sofrer esse abandono. Não beber mais de sua luz. Foi preciso compreender que as mentiras que eu contava só maltratavam mais ainda a única pessoa que contemplou minha verdadeira essência. Foi preciso ver que a frustração corroendo os nervos daquele ser gentil. Foi preciso ver, devido a meu egoísmo e descuido, seus rubros lábios, pouco a pouco definharem e tornarem-se qual marfim. Foi preciso ver aquele peito sem mais respirar e não mais ouvir o som de seu sorriso.
Sim! Não foi preciso transformar-me apenas nesse verme, o crucial foi acolher a perda do que me era mais valioso... Outrora ouvi dizer que a perda carrega o poder de arquitetar grandes mudanças, de modificar destinos. Aqui estou eu, vivendo esse fato, esse fado.
Por isso, pela memória do último sorriso daqueles rubros lábios que decoravam os meus dias, eu me abandono nesse deserto para vós seres ferinos. Para vós que sois muito mais sensatos, muito mais íntegros do que qualquer homem que já cruzou meu destino, do que qualquer homem que já fui!
Senhores da escuridão... aqui estou para ser devorado, para ser destituído de tudo que já fui... aqui estou a espera de vossos dentes, de vossas unhas. Estou a espera da ferida do castigo, a espera do sangue escorrendo pela boca, do rasgar da carne. Aqui estou senhores...
Entregue a vós na esperança de que depois que esse meu eu sujo não mais restar e toda dor, ânsias e escuridão extravasarem ao além. Finalmente possa surgir um novo eu. Um eu que tirará do veneno da perda seu mais potente elixir.  Que transcenderá as portas desse umbral como um ser mais íntegro, um ser mais puro e livre de qualquer dor.
Mas enquanto isso não sucede... vinde a mim seres da noite do deserto! Que nesse colapso insano a perda venha se tornar minha dor menor...

 (Michelle C. Buss)

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